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A turma de desporto para António Vitorino de Almeida
Quando a rentrée se aproximava vertiginosamente, nós, os professores, costumávamos sentir, em conjunto com um leve sabor amargo de fim de férias, o entusiasmo pelas novidades que o novo ano escolar nos traria, principalmente em relação à distribuição de serviço. Este ano, não sei bem por que razões, muitos de nós escorregaram para a escola como quem vai pela primeira vez até à cadeira do barbeiro, cheio de medo de vir de lá sem uma orelha.
É ainda um tempo em que vimos habituados a poder ler o jornal de fio a pavio, como devia ser todos os dias apesar do péssimo serviço que tantas vezes nos é prestado.
Todos os órgãos de informação falaram na questão dos preços dos manuais escolares; os tablóides e os outros, os que dizem não o ser, alertaram meio mundo para essa questão, esquecendo todas as outras que o uso exagerado destes instrumentos de trabalho pode provocar; e neste apreço pelo desvio da atenção dos pais em relação às questões essenciais (ignorância ou intenção?) acabaram por ser bem servidos pelo ME (ou vice-versa?); toda a gente discutiu o preço dos manuais como se fosse o pão de cada dia que tivesse subido e todos interiorizaram mais uma vez que os alunos precisam de manuais como de pão para a boca, o que não é verdade. Pelo menos competiria aos responsáveis do ME esclarecer a população a este respeito. Mas louve-se a justeza relativa da boa nova da obrigatoriedade de manter o manual durante seis anos.
Nada nos deve espantar daqui para a frente depois de vermos uma primeira página do "Público" com grande chamada e foto da inauguração de algo numa escola, em que um prelado faz a respectiva aspersão, na presença da Senhora Ministra da Educação e em que o senhor Primeiro Ministro se benze; tudo isto, certamente dentro do respeito pela liberdade religiosa de cada um, mas esquecendo-se suas excelências que representam ali os princípios da Constituição da República Portuguesa, segundo a qual a escola é laica; convém até interrogarmo-nos se não se trata de um acto anticonstitucionalissimamente (como eu gostava desta palavra quando era jovem estudante?) grave. Como cidadão (a minha convicção religiosa não interessa aqui?) sinto-me confuso.
Agora que a escolas estão a ficar desertas, a nível discente e também no que diz respeito a professores, parece boa a notícia de que vamos ter câmaras para segurança da comunidade. Tão sozinhos estamos - e somos já quase todos só "os mais velhinhos" - que a coisa se começa a tornar perigosa. Pouca gente esclareceu que não foram simplesmente 45 mil professores que ficaram sem emprego; a senhora ministra da educação esqueceu-se de frisar bem que pelo menos 17 mil perderam o emprego; isto é: já tinham trabalhado alguns anos e não tiveram lugar: há menos alunos e os professores que ainda estão nas escolas passaram a ter mais horário lectivo. Que geração será esta que vai ser educada nas escolas só por pessoas com mais de 45 anos? Há-de ter repercussões e dar para alguns estudos das Ciências Sociais?
Lá fui então até à escola. Ao contrário do que num diz-se-que-disse-e-que-diz várias vezes repetido na RTPN, não estávamos ali com vontade de fazer cair em cima dos alunos a nossa amargura profissional (ninguém, poderia, aliás, dizer uma coisa dessas); somos profissionais e muito dignos; porém, neste primeiro dia de aulas notava-se já um cansaço que vinha do ano anterior: uma frustração por um concurso para titulares cheio de injustiças que se espelhava agora também na ausência de alguns colegas; e embora sejamos profissionais correctos, os nossos olhos fingem mal, perante os alunos, as tristezas causadas por tantas mudanças ? às vezes necessárias ? mas levadas a cabo tantas vezes de forma estonteante.
Entre outras, calhou-me a turma de Desporto. Equipas "famosas". Lá fui. Afinal a turma é impecável, raparigas e rapazes cheios de vontade de aprender. Conversar sobre futebol (eu que não percebo mesmo nada?) e tentar explicar que há outras modalidades desportivas igualmente importantes. Achei que ia ser difícil, num país em que os jornais dedicam ao futebol um número de páginas bem superior ao que dedicam a todas as outras dezenas de modalidades; num país em que qualquer canal televisivo põe tudo quanto é cão ou gato (poetas, pintores, escritores, designers, jornalistas não desportivos, enfim gente com "responsabilidade" e que se preocupa pouco se a sua arte é ou não divulgada entre as populações ? gente "culta") a falar sobre o "desporto-rei"; ou melhor, a discutir horas quantos centímetros quadrados da mão de Scollari assentaram na cara do outro; num país em que os especialistas/cientistas na área - que os há em Portugal da melhor qualidade ? raramente vão à televisão.
Perante este dilema voltei em pensamento às férias e lembrei-me do Maestro. António Vitorino de Almeida, com vários convidados, em espectáculos apoiados pela Câmara de Caminha, de aldeia em aldeia, a mostrar coisas de qualidade, da música dita clássica, ou não, àqueles que pareciam a priori ter outros gostos, se se permitir a imagem, que pareciam gostar só de futebol. E os centros culturais a abarrotar de Povo, em pé, a aplaudir. E a minha singela homenagem a ficar aqui, perante alguém que ainda se preocupa com a dignidade e a identidade nacionais.
Gostava de ver aqueles comentadores de sofá das nossas televisões por esse país fora, nas férias, com o Maestro.
Se António Vitorino de Almeida me desse a honra de ser professor na minha escola, a turma de desporto era para ele. Para falar de futebol e de música. De Vida e de Educação.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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