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"A escola é castradora quando a sociedade a utiliza como um instrumento de dominação"

Pascal Paulus, professor associado ao Movimento da Escola Moderna:

Diplomado pela Escola Normal de Gent, na Bélgica, em 1977, onde se formou como professor do ensino primário, faz uma curta passagem pelo ensino público laico belga e é convidado a integrar uma equipa cujo objectivo era criar, na cidade de Leuven, uma escola assente na pedagogia institucional. No início dos anos 80 trabalha na alfabetização de adultos e participa em projectos de desenvolvimento local e trabalho com jovens sob contrato de aprendizagem.
Vem para Portugal no final da década de 80, onde trabalha como coordenador pedagógico numa escola privada. A equivalência parcial do diploma permite-lhe começar a trabalhar no primeiro ciclo do ensino básico público e, paralelamente, como formador de formação contínua de professores do 1º ciclo nas áreas da matemática e do desenvolvimento curricular, função que exerceu ao longo de 18 anos. Integrou também a equipa do Laboratório de Aprendizagens, da Câmara de Cascais, um espaço de reflexão e de experimentação para técnicos ligados ao ensino
É, desde 2005, professor efectivo da escola básica do primeiro ciclo Amélia Vieira Luís e sócio do Movimento da Escola Moderna e da cooperativa Sociedade de Estudos e Intervenção em Engenharia Social, na qual tem participado em projectos de desenvolvimento local, baseado na intervenção com mulheres, em zonas urbanas.
Autor dos livros "Histórias de matemática ? uma abordagem da didáctica experimental da matemática" (publicado em co-autoria com Miguel Narciso) e "A escola faz-se com pessoas ? Undi N ta Bai?" e de dezenas de artigos em diversas publicações periódicas, Pascal Paulus é também colaborador regular de A Página da Educação na rubrica "Coisas do tempo".

Conte-nos um pouco acerca do seu percurso pessoal: porquê a opção pelo primeiro ciclo e de que forma um professor belga acaba por vir dar aulas para Portugal?

Eu sou professor do ensino primário de formação ? ou "instituteur", como se designa em francês, que considero uma palavra mais adequada por corresponder melhor à especificidade do trabalho de monodocência, permitindo um trabalho pedagógico continuado com crianças e jovens e a criação de um espaço cultural de referência.
O contacto com a pedagogia institucional, concretizada através do meu pai, professor de jovens em contexto de trabalho que haviam sido afastados do sistema educativo regular, foi determinante na minha opção. Para a minha decisão contribuiu igualmente o estágio que realizei numa turma organizada por um professor que fazia parte de um grupo ligado à pedagogia institucional e
que trabalhava com Fernand Oury, "instituteur" francês ligado ao Movimento da Escola Moderna francesa.
Esta experiência constituiu para mim um encantamento: ver como é possível pôr os miúdos a organizarem-se por eles próprios, através da mediação do professor, uma conceptualização de turma que Fernand Oury designava por "turma cooperativa organizada pela pedagogia institucional", onde o conselho de turma é o instituinte de toda a organização da turma.

De que forma veio parar a Portugal?

Depois de alguns anos a trabalhar na Bélgica ligado a vários projectos fundados na pedagogia institucional, conheci um grupo português num congresso internacional do Movimentos da Escola Moderna, realizado em Lovaine, na Bélgica. Esse encontro marcou-me decisivamente, não só pelo teor do debate que proporcionou como pelo facto de me ter apercebido que havia pessoas neste país a implementar aquilo que eu procurava fazer na Flandres.
À paixão pedagógica junta-se uma paixão pessoal, já que conheci a minha mulher, também ela professora, através do Movimento da Escola Moderna. A ideia de virmos para Portugal concretizou-se porque naquela altura, em meados dos anos 80, nos parecia pedagogicamente mais aliciante trabalhar na escola primária portuguesa do que na flamenga. Além de os desafios serem maiores, agradava-nos a forma como estava organizado o ensino e pareceu-nos que o programa do 1º ciclo aprovado em 1989 facilitava a gestão institucional. A realidade entretanto mudou, mas na altura estes factores foram determinantes na nossa escolha.

Trabalha numa escola dos arredores de Lisboa com uma população essencialmente composta por crianças filhas de pais imigrantes ou pertencentes a minorias. É mais difícil trabalhar nessas condições?

Penso que trabalhar com filhos de imigrantes ou trabalhar com filhos de residentes é basicamente o mesmo. Há, no entanto, uma série de condicionantes que complicam a relação com a escola. Uma delas é o facto de estas crianças serem oriundas de famílias que não têm um estatuto social, ou cujo estatuto não é reconhecido como o estatuto padrão. Faço minhas as palavras de um colunista do jornal Público, que se referia recentemente ao facto de hoje em dia já não existir "proletariado" mas sim "precariado".
Estas crianças são precisamente filhas desse precariado, pessoas que muitas vezes estão apenas de passagem no país, em transição para outros países europeus como a Inglaterra, a Holanda ou a Suiça. Muitos dos meus alunos chegam mesmo a perguntar-me porque razão eu próprio não emigro? porque têm noção de que aqui a vida está difícil.
Depois, a escola e os próprios professores são quase vistos como funcionários das finanças (risos) e a relação entre as duas partes é praticamente reduzida ao mínimo indispensável. Quando a escola contacta os encarregados de educação é habitualmente para lhes dar conta do mau comportamento das crianças? A própria escola cria com estas pessoas uma relação hierárquica, burocraticamente bem definida.
Um dos aspectos que mais me surpreende, por exemplo, é o facto de uma criança só se poder matricular se tiver o boletim de vacinas em dia, coisa que eu nunca tinha visto na Bélgica. Eu compreendo os motivos que estão por trás desta medida, mas ainda assim, na minha opinião, não deixa de ser algo estranho. Ou seja, há uma estrutura que nada tem a ver com a escola e que coloca entraves. A relação que a partir daí se estabelece é, naturalmente, uma relação hierárquica.

Sente que esse contexto socialmente desfavorecido que retratou coloca mais dificuldades na implementação do trabalho pedagógico dos professores?

Eu costumo dizer que trabalho num bairro de pessoas pobres. Assim é mais claro. Um bairro que pertence a uma freguesia onde cerca de um terço do total de fogos é de habitação social (noventa por cento dos quais concentrados aqui) e onde existem quatro escolas do primeiro ciclo, duas delas pertencentes ao nosso agrupamento. Estas duas escolas servem cerca de 300 crianças, todas elas oriundas deste meio. Ou seja, não há outros miúdos na minha escola a não ser os miúdos do bairro social, havendo portanto, um fenómeno de "guetização" muito forte.
Recentemente, foi construído em frente ao bairro social um empreedimento privado, sendo curioso verificar que, à medida que este vai sendo habitado, aumenta o número de carrinhas de escolas e colégios que vêm buscar os miúdos. Portanto não há nenhuma interacção entre os dois contextos.
Posto as coisas nestes termos, é óbvio que existem dificuldades pedagógicas acrescidas no nosso trabalho. Eu lido com crianças que muitas vezes não têm sequer um livro em casa e cujos pais têm um tempo limitado para se ocupar delas. Nos últimos anos, muitas delas tiveram oportunidade de frequentar o ensino pré-escolar, o que é muito bom. Mas que por si só não é suficiente, porque não há uma cultura de referência escolar nas respectivas famílias. Neste sentido, é preciso estar extremamente atento às referências trazidas por estas crianças e pelos pais para, a partir daí, ter âncoras que possam ajudar a fazer a transferência da cultura que lhes é própria para uma outra cultura.
Acrescente-se a isso, e este aspecto parece-me muito importante, o facto de a escola, em muitos sentidos, ter a mesma cultura autoritária, de cima para baixo, que se vive no bairro. Famílias em que o pai manda na mãe, e a mãe, por sua vez, manda nos filhos. Quando estes se portam mal, o pai reprime a mãe que reprime os filhos.
Na escola pública está presente exactamente este género de estrutura vertical, na qual a criança, situada na base, é alvo de sansões disciplinares ditadas por um regulamento interno que lhe é imposto por adultos. Ora, para uma criança que em casa tem como referência a autoridade do adulto, que manda e castiga caso ela desobedeça, a associação é quase imediata, apenas diverge na forma.
E dado que as crianças nos seus grupos de pertença se revoltam contra a autoridade dos adultos, acabam por fazer o mesmo revoltando-se contra a autoridade da escola? Dentro deste contexto, tentar implementar uma comunidade democrática e pô-la a funcionar é um desafio muito grande.

Como é esse esforço de tentar pôr em prática uma comunidade democrática na escola e na sala de aula? Os outros professores acompanham-no ou têm uma certa desconfiança dessa atitude?

Não posso falar pelos restantes professores. Felizmente, a liberdade metodológica do professor está consagrado no Estatuto da Carreira Docente. Na minha opinião, para as crianças se desenvolverem como cidadãos têm de ter contacto com uma forma de democracia directa e não delegada, como habitualmente acontece. E isto tem de ser aprendido e experienciado numa comunidade pequena. E um bom instrumento para a pôr em prática é o chamado Conselho de Cooperação.

Que é uma das metodologias defendidas pelo Movimento da Escola Moderna?

Sim, exactamente. Que se inicia pela organização do trabalho na sala de aula, no qual se apela à cooperação dos alunos, e que num segundo momento se concretiza num momento formal, que é o Conselho de Cooperação, onde se tratam os assuntos mais importantes que dizem respeito à vida da turma.
De resto, tudo se resume a uma questão de tempo e de paciência. Não será no primeiro dia que as crianças vão contar o que lhes vai na alma, mas é uma forma de construir espaços onde esta abertura se torna possível, e que, pouco a pouco, vai criando laços mais fortes entre o professor e as crianças.

Que resultados práticos tem colhido da implementação do Conselho de Cooperação?

Ele resulta sobretudo quando é aplicado na resolução de aspectos muito práticos e concretos do quotidiano da sala de aula, como determinar, por exemplo, o que fazer quando um pincel utilizado para uma cor fica inutilizado por ter sido aplicado numa cor diferente. Em primeiro lugar, claro, ter mais atenção para que isso não volte a acontecer. Depois, comprar outro pincel. É através destes pequenos mecanismos que os alunos se apercebem de que há um debate possível sobre a forma de se organizarem na sala de aula.

E isso acaba por ser aplicado a outros contextos, como as relações entre os alunos e entre estes e a escola?

Sim, mas só com o decorrer do tempo. Este ano, por exemplo, tive miúdos de 5 e 6 anos que iniciavam o ensino primário. E a nossa escola, apesar de ser um estabelecimento de intervenção prioritário e de no projecto estar contemplado a reorganização do espaço exterior, não tem qualquer tipo de equipamento lúdico no recreio, tarefa que compete à autarquia.
Aproveitando uma discussão sobre este tema realizada numa outra turma, lancei a ideia aos meus alunos de elaborarmos uma proposta à câmara municipal, que também foi acolhida por outro professor. E isso implicou uma planificação do trabalho, através da realização de inquéritos, de recolha de informação, do estabelecimento de contactos, da construção de uma maquete, etc. No final, produzimos um pequeno filme que mostrava aos responsáveis autárquicos qual o tipo de recreio que as crianças gostariam de ver implementado.
Apesar de se tratar de um trabalho eminentemente prático, pelo meio surgem sempre discussões, que já são de ordem organizacional. Depois, o trabalho conjunto de duas turmas acaba sempre por originar algum tipo de conflito. Nesse caso, temos de os discutir e ver qual a melhor forma de os ultrapassar?

Tendo em conta que a metodologia de trabalho do Movimento da Escola Moderna é um pouco diferente daquele que é habitualmente desenvolvido pela maioria dos professores, sente-se isolado na sua forma de trabalhar?

Por vezes, mas a necessidade de falar com outros colegas sobre o quotidiano da escola faz com que procure romper esse isolamento, quando e se ele acontece. Porque há sempre a possibilidade de no interior de uma comunidade escolar (e a minha não é tão pequena quanto isso) procurar aqueles que, tal como eu, estão atentos àquilo que acontece na comunidade escolar e no bairro em que ela se integra. E pensar que há sempre a possibilidade de estabelecer uma parceria.
Por outro lado, também considero fundamental não interferir no trabalho dos outros quando isso não é desejado. Nesse sentido, nunca critico nenhum colega e mantenho-me disponível para o debate. A partir daí é sempre possível trabalhar em conjunto. O importante, na minha opinião, é não ficar no isolamento.

O livro que editou sob a chancela da Profedições intitula-se "A Escola Faz-se com Pessoas ? Undi N Tai Bai?". O título do livro pretende, de alguma forma, ilustrar essa concepção de escola e de trabalho?

A escola é um espaço cultural e um espaço de humanização. É, ao mesmo tempo, um espaço de passagem. E nesse sentido é, em si própria, um espaço artificial. O grupo de trabalho que se encontra nesse espaço é, também ele, artificial. Ninguém escolheu estar com aquelas crianças. E nenhuma daquelas crianças escolheu estar naquele espaço, com aqueles adultos. A única condição que está pré-definida é o facto de a escolaridade obrigatória obrigar à passagem por um espaço comum. No que esse espaço se converte depende de todos os elementos que nele interagem. Cada uma das crianças com a sua história de vida e o professor com a sua história de vida.
Depois, na minha opinião, este espaço só tem sentido se também interagir com o exterior. Ele é uma espécie de laboratório, onde se aprende o que é ser cidadão num contexto de participação directa. Todos nós temos hipóteses de agir sobre o contexto que nos rodeia. Há neste espaço algumas regras exteriores a ele e uma "encomenda" à qual não podemos, nem devemos, escapar: os conteúdos programáticos. Enquanto grupo, a nossa tarefa é dar resposta à encomenda que nos foi proposta, para a qual nos organizamos e trabalhamos.
Mas isto só faz sentido se o que aprendermos servir para alguma coisa depois de sairmos daquele espaço cultural. Daí a ideia de que a escola só tem sentido se a pensarmos como um espaço de construção entre pessoas, sejam elas crianças ou adultos, num contexto de alfabetização ou de formação contínua? A ideia continua a ser a mesma. A mais valia do saber que aí se gera é construída a partir das pessoas, com as pessoas, para aquelas pessoas.

Num dos seus textos já se referiu à escola como uma instituição "castradora". Até que ponto é possível mudar essa percepção?

A escola é castradora quando a sociedade a utiliza como um instrumento de dominação. Neste sentido, penso que a mudança terá de ir mais além do que a simples alteração de práticas pedagógicas.
Paulo Freire dizia com insistência que só existe pedagogia quando se trabalha com as pessoas. A escola, no fundo, é um instrumento político que pode assumir o seu papel de duas formas totalmente distintas: um em que domina, reproduzindo socialmente indivíduos que se limitam a executar aquilo que se lhes ordena; outro no qual assume valores humanistas, formando e dando possibilidade às pessoas de se deslumbrarem ? a "escola dos deslumbramentos". Uma escola em que o aluno está na posse dos instrumentos que lhe permitem a si próprio evoluir num contexto de democracia participativa.
A escola castradora a que me refiro não corresponde politicamente a esta última dimensão, reflectindo, afinal, aquilo que é a democracia representativa das nossas sociedades, onde os alunos não têm a palavra, onde aprendem não a ser cidadãos mas meras entidades.

Foi, durante muitos anos, formador de professores. Que conselho daria a quem se está a iniciar na profissão?

Um professor é, antes de mais, um ser humano. É precisamente isso que o qualifica. E como qualquer ser humano ele tem um determinado patamar de segurança, que só evolui quando ele aceita confrontar-se com os seus pares, permitindo-lhe questionar-se e ultrapassar os obstáculos que se lhe deparam.
Julgo que a formação inicial de professores, quando conduzida com inteligência, possui um conjunto de elementos interessantes (como o figurino de estágios, o ano probatório e a figura de professor cooperante) que possibilitam a construção desse processo.
Ao novo professor não basta ter muitos conhecimentos científicos, é indispensável ter esse patamar mínimo de segurança e contar com alguém mais experiente que, servindo de referente, o ajude a fazer a gestão da sua aprendizagem de forma que mais tarde possa ser ele o referente na gestão da aprendizagem dos seus alunos.
Neste sentido, julgo que o ano probatório proposto no novo figurino de formação inicial pode constituir uma excelente forma de ir ganhando algumas certezas provisórias em espaços onde o jovem professor ainda não sente muito à vontade. Acima de tudo, porém, penso que é um processo que passa muito mais pelas pessoas do que por uma mudança radical do processo de formação em si.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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