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Repensar Portugal através do Brasil
Para além das notícias de circunstância, as referências mais substanciosas que vimos nos jornais à presença no nosso país do Presidente do Brasil, Lula da Silva, a convite do Governo português e no contexto da cimeira da União Europeia-Brasil, não saíram, em geral, do âmbito dos negócios.
No único caso de um artigo publicado na página de Economia do "Expresso", assinado por João Vieira Pereira, concede-se, com alguma benevolência a nosso favor, que nas relações luso-brasileiras (parafraseando Jorge Sampaio) há mais vida para além da Economia:
"Adoramos a sua música, a literatura e o futebol. Frequentamos as suas praias, compramos casas de férias e até imitamos o seu sotaque com prazer. Sempre soubemos respeitar o Brasil e aproveitar o máximo que nos podia dar, principalmente a nível cultural (...)".
Se o pressuposto é dirigido aos portugueses que só conhecem a história das relações luso-brasileiras dos relatos dos veraneantes ou dos antigos emigrados de torna-viagem, então o respeito será o infundido pela grandeza, riqueza e exuberância da terra brasileira; e o máximo aproveitamento que dela tirámos só pode ter sido a exploração das minas de ouro, do pau-brasil, da cana açucareira, do tabaco, enfim, do comércio monopolista que, até ao princípio século XIX, pautou as relações de Portugal com a sua maior e mais importante colónia.
Foi assim até à chegada, em Janeiro de 1808, da Corte do príncipe-regente D. João e de sua mãe a rainha D. Maria I (em avançado estado de demência), fugindo à ameaça napoleónica, para que se salvasse, no Brasil, a "soberania" de Portugal. Com um séquito de milhares de pessoas, de imediato ali foi implantado um "reino" que, autonomizado da Mãe-Pátria, iniciava aquilo que hoje consideraríamos um prelúdio da descolonização; e logo em 1810, com a assinatura de um novo tratado (já havia o de Methwen) com a Inglaterra, que na Europa "defendia" a independência do território lusitano, o Brasil deixou de ser "colónia" de Portugal para ser, na prática, "colónia" da Inglaterra, que passou a dominar o seu aparelho económico: serviços, portos, importações e exportações.
A separação efectiva da Mãe-Pátria, que já o era "de facto", confirmou-se "de jure", em 1822, pela voz do príncipe português D. Pedro, após o regresso imposto ao pai, D.João VI, a Portugal, em 1821, para ocupar o trono. Mas não foi "respeitosamente" que Portugal reagiu ao "grito do Ipiranga", só aceitando reconhecer a independência do Brasil em 1825, depois de este assumir a dívida de dois milhões de libras esterlinas de um empréstimo feito por Portugal em Londres...
Também não foi "respeitosamente" que o Governo de Portugal viu condicionada a saída dos seus pobres e desempregados para o "País-Irmão" quando o Brasil, em crise, precisou de suster a corrente da imigração, até ali necessária para substituir, após o abolicionismo, em 1888, os escravos negros antes compelidos a trabalhar nas plantações, nos engenhos e nas minas. Muitos desses escravos, já homens livres, decidiram retornar à terra-mãe de África (e uns tantos a Angola), vindo a constituir, em países como a Nigéria, autênticos "nichos" afro-brasileiros, que haveriam de servir de ponte, já nos anos 60 do século XX, para o lançamento e depois a implementação, na década seguinte, da diplomacia brasileira na África Negra.
E também não foi "respeitosamente" que Salazar, "respeitador" do Brasil do seu "irmão-gémeo" Getúlio Vargas, pelos laços fascizantes que os irmanavam, viu o "aliado natural" transformado em porto de abrigo para os "inimigos" do Regime, como Agostinho da Silva, Jaime Cortesão, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Henrique Galvão, Humberto Delgado, etc.etc. (Ironia da história: a mesma abnegação brasileira haveria de dar guarida, em 1974, a Américo Tomás, Marcelo Caetano e à sua "corte"...).
Mais uma vez Salazar viu ofendido o seu "respeito" pelo "País-Irmão" quando, em coerência com a sua matriz sociológica e sensível aos novos "ventos da história", o Brasil enviou, em 1972, uma delegação diplomática, chefiada pelo ministro Gibson Barboza, a vários países africanos que tinham ascendido à independência, dando sinal a Portugal de que, como defendia o diplomata Afonso Arinos, o Brasil continuaria a ler Camões mas não deixaria de praticar António Vieira, que escreveu uma "História do Futuro"; e o próprio "pai" do lusotropicalismo, Gilberto Freyre, acabaria por concordar que o Brasil "reconquistava o tempo perdido".
E não foi respeitosamente, com certeza, que muitos portugueses que também não leram a "História do Futuro" viram o Brasil reconhecer a independência de Angola logo no início de 1976, enquanto no confuso Governo de Portugal ainda se problematizava o tempo e o modo de o fazer...
Muitas mais questões se poderiam levantar se os líderes da opinião pública portuguesa tivessem aproveitado a oportunidade desta Cimeira para, sem negligenciar os grandes interesses económicos actualmente em jogo, enfatizar a necessidade de manter vivos e actuantes os valores prevalecentes do património comum, como a língua e a cultura, porque são estes que mais estreitam e tornam duráveis as relações entre os povos.
Entretanto, meditemos na interrogação feita pelo citado jornalista, enquanto ia lembrando que "o Brasil de hoje precisa muito menos de Portugal do que nós precisamos de uma economia de 180 milhões de consumidores":
"A cimeira União Europeia-Brasil pode ter posto o mundo de olhos em Portugal ou a ouvir falar português, mas terá aproximado Portugal e Brasil além dos calorosos apertos de mão e sorridentes semblantes?"
Pois para o Brasil os portugueses são "companheiros", como declarou amistosamente, numa entrevista, o Presidente Lula da Silva. E talvez só pelo receio de ser mal interpretado não acrescentou que, além de Portugal, o Brasil é o único país do mundo onde os portugueses não se sentem estrangeiros.

  
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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