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Do carácter colectivo da C&T
Não sei se é caso de existir uma lei ou uma regra geral. Contudo, atribuir uma descoberta ou uma invenção a este ou aquele pode não ser fácil ou mesmo realizável. Como alguém já disse - alguém ou outro alguém, ou outro, ou? - mais ou menos assim: o que eu fiz nunca o teria feito se não estivesse sentado em cima dos ombros de gigantes; e mesmo dizer gigantes não dá bem conta da realidade - esses mesmos gigantes são eles próprios o resultado da combinação de muitos outros, etc. Enfim, uma inextricável e infindável rede de contribuições?
Exemplos marcantes são as duas invenções mais conhecidas do arranque das telecomunicações "eléctricas": o telégrafo e o telefone. Para já não irmos à complexa empresa da mesma segunda metade do século XIX que foi e é a dos cabos submarinos. Nem à história do arranque da comutação telefónica na sua fase manual e com as suas telefonistas (na realidade eram quase todas mulheres, para não dizer todas).
Quando se pergunta quem foram os inventores, quando se elabora uma lista dos inventores (com frequência, uma lista em que aparecem também autores de descobertas científicas ressoadoras de realizações ou inovações tecnológicas), no caso do telégrafo salta logo o nome de Samuel Morse e, no caso do telefone, o de Alexander Graham Bell. E, se estivermos a participar num daqueles populares programas de televisão, surgindo perguntas acerca dos autores das invenções do telégrafo ou do telefone, são estes os nomes em que teremos de acertar ou, então, erramos e lá se pode ir o dinheiro que contávamos ganhar.
Na verdade, o critério utilizado é o de quem registou as patentes e, nestes casos, ambos ocorridos nuns EUA que já iam na sua caminhada para nº1: Morse para o telégrafo (se bem que o seu colaborador Vail tenha uma parte menor nesse registo) e Bell para o telefone. Mas alto lá - perguntarão logo vários, em particular, de extracção inglesa (relembrando a altura da Inglaterra vitoriana, da Grã-Bretanha, ainda era a nº1) -, então não foram Cook e Wheatstone na célebre linha entre Paddington e Slough, uma demonstração primeira? E Morse terá aprendido muito na sua viagem à Europa, caso contrário não teria inventado nada - dizem outros. E, perguntarão os italianos, então não foi António Meucci com o seu teletrofono, cuja demonstração antecedeu mais de uma quinzena de anos a do telefone de Bell? Neste caso, até houve um lóbi italo-americano que conseguiu convencer o Congresso dos EUA em 2002 a declarar a primazia da invenção por parte de António Meucci - que este só não registou a patente porque não dispunha de meios financeiros para o fazer. E outros casos e tantas outras questões! Talvez ainda mais no caso do telefone do que no caso do telégrafo. Uma pequena navegação na Internet e é um mar de informação e história sobre estas questões - basta começar por uma simples procura através de um motor de busca e é um quase nunca acabar de informação para quem queira entender um pouco do que tem vindo a ser dito aqui.
Daqui se pode inferir que a determinação da propriedade intelectual e, nos casos concretos referidos, da propriedade industrial e de quem tem direito a usufruir dos respectivos benefícios financeiros derivados da sua exploração no mercado é uma matéria muito mais complexa e muito menos transparente do que muitos julgarão e tantos no-lo quererão fazer crer. E quem diz benefícios financeiros diz também notoriedade e fama. Dei estes exemplos mas podia dar muitos outros noutras áreas. incluindo, como se referiu, áreas científicas. A começar pela polémica em torno da dupla hélice do ADN de há pouco mais de meio século atrás.
Ganhar consciência de que os avanços mais "espectaculares" são obra colectiva, e que a participação individual, se bem que seja muito importante, pouco vale quando não inserida no grande colectivo da C&T não é fácil. Até porque teria impactos profundos em termos de propriedade intelectual e de valor económico do registo de patentes?

  
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Francisco Silva
Engenheiro, Portugal Telecom
Francisco Silva
Engenheiro, Portugal Telecom

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