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As "Mentiras" que a(o)s professora(e)s vão (ter de) ensinar (II)

Bem vindos à (re)ocidentalização do ocidente. Foi desta forma que interrompi "As «Mentiras»" que a(o)s Professora(e)s vão (ter de) Ensinar (I)" uma análise que questiona e tenta alertar para os perigos como são veiculados determinados saberes da escolarização. Queremos nesta segunda parte ir mais além. Para tal repousaremos a nossa análise, por exemplo, na forma como se constrói e (pretende) perpetua(r) o mít(ic)o de Colombo (e por arrastamento o de outras grandes musculadas masculinidades da cultura ocidental) pelas carteiras da sala de aulas, subsidiando os nossos argumentos nas abordagens de Spivak, Chomsky, Zinn, Todorov, hooks, Freire, Macedo e Apple. Entre outras questões, perceberemos como a escolarização se tem pautado por processos de obliteração histórica.
Se por um lado a Apple (1993) se deve dar o mérito de ter reconfigurado a questão Spenceriana ? qual é o conhecimento socialmente mais valioso ? numa outra mais incisiva - de quem é o conhecimento socialmente mais valioso ? o facto é que, quer Spivak (1990), quer Chomsky (1992, 2002), Zinn (1999, 2001), Todorov (1984), hooks (1994), Freire (2004) e Macedo (2006) complexificam ainda mais a problemática em torno do conhecimento. Tal problematização é de uma preciosidade sem limites para a complexificação do debate em torno dos saberes da escolarização. Pese embora não minimize a necessidade de compreendermos o conhecimento como algo socialmente construído de uma forma selectiva, Spivak (1990) adverte para a necessidade de nos preocuparmos também em perceber 'quem apreende' esse conhecimento cunhado como socialmente legítimo. Todavia, Chomsky, Zinn, Todorov e hooks, abordam a problemática do conhecimento curricular de uma forma bem distinta, sem que contudo, tais abordagens marginalizem a pertinência das abordagens de Apple (1998) e de Spivak (1990). Chomsky, Zinn e hooks, apoiando-se na construção de Colombo como herói da civilização ocidental, salientam que o escopo da questão do conhecimento escolar centra-se no modo como os conhecimentos curriculares são transmitidos.
Durante séculos, Colombo (e não só) tem sido descrito nos manuais escolares dos Estados Unidos (e não só) como 'o descobridor', um dos grandes heróis da civilização ocidental. No entanto, Zinn, Chomsky, Todorov a mensagem de Colombo vertida nos manuais escolares dos Estados Unidos é uma perfeita falácia. Na sua obra Legitimacy in History, Chomsky refuta o conceito de herói em Colombo, argumentando que a história dos Estados Unidos é uma história de puro genocídio. Nas suas palavras, "Aqui nos Estados Unidos, cometeu-se pura e simplesmente genocídio. Puro genocídio. Dados estimativos dão conta que a norte do Rio Grande, viviam cerca de 15 milhões de americanos nativos na altura em que Colombo chegou. [Todavia] quando os Europeus atingiram as fronteiras continentais dos Estados Unidos, existiam apenas 200.000 o que significa genocídio em massa" (Chomsky, 2002: 135-137).
A realidade chocante revela que "através da história americana este genocídio tem sido aceite como perfeitamente legítimo", independentemente do facto de Colombo "ter sido ele próprio um assassino em série" (Chomsky, 2002: 136). É precisamente este desafio crítico à legitimidade da história que podemos encontrar nas abordagens de Zinn e de hooks. Contudo, enquanto para Chomsky (1992) tal legitimidade constitui um processo de 'engenharia histórica', para Zinn (1999) estamos perante um 'processo de obliteração', um processo que segundo hooks (1994: 197) tem como intuito perpetuar a "supremacia de uma estrutura patriarcal branca capitalista".
Zinn (1999: 47-75) vê o passado 'Americano' como uma história de género 'levada a cabo' por homens brancos ricos. Tal como mantém (1999: 47-75), a história dos Estados Unidos é uma espécie de processo de 'deixar de fora', um processo insidioso de obliteração no qual as escolas não são inocentes". Como destaca Zinn (1999: 3), constatamos este processo de obliteração, por exemplo, no modo como surge descrita a guerra no Vietname. Para Zinn, esta guerra é uma questão central para a actual geração dos Estados Unidos, uma guerra em que os Estados Unidos 'só' despejaram 7 milhões de bombas em cima de 35 milhões de pessoas". No entanto, os manuais escolares dedicam a esta questão dois magros e pálidos parágrafos.
Como salienta Zinn (2001: 102), a história de Colombo é uma história de "conquista masculina". Não obstante os povos indígenas terem saudado Colombo e a sua armada de uma forma amiga (isto é perfeitamente perceptível nos escritos de Colombo "eles são as melhores pessoas do mundo e sobretudo muito gentis ? não têm conhecimento sobre o que é ser mau ? não roubam nem matam ? amam os seus vizinhos e a si próprios e têm o falar mais amoroso do mundo ? andam sempre a rir, são muito simples e honestos, demasiado liberais com tudo o que têm e não recusam nada do que têm quando se lhes pede") esta atitude foi completamente pervertida, uma vez que Colombo viu os nativos "não como hospitaleiros, mas como servos que poderiam ser subjugados, fazendo deles o que lhe apetecesse na sua real gana" (Zinn, 2001: 99). Os indígenas não escaparam mesmo ao cruel processo de genocídio, violação de mulheres e de crianças que eram "atiradas aos cães para serem devorados" (Zinn, 2001: 101). Estamos, no entender de Zinn (1999, 2001), perante uma prática de genocídio assente numa 'rationale' de raça e género que os manuais escolares obliteram por completo.
No entender de Todorov (1984: 35), que apoia a sua análise no estudo conduzido por Bernaldez sobre as cartas de Colombo, os índios eram vistos por Colombo de uma forma insultuosa ? "embora nus fisicamente, estavam mais próximos dos homens do que dos animais". O sentido ideológico do termo 'embora' não deve ser aqui minimizado. Por estranho que pareça, Colombo foi incapaz inclusivamente de reconhecer uma nova diversidade de linguagens expressa pelos povos indígenas, aceitando-as como linguagens reais (obviamente, com uma estrutura bem distinta da do Latim, do Espanhol ou do Português). Daí que Colombo se tenha referido a estes povos da seguinte forma ? "uma vez privados de linguagem, estavam também privados de uma propriedade cultural, não tendo costumes, rituais e religião" (Todorov, 1984: 34-35). Esta visão 'raça-género' do legado de Colombo surge também muito explícita na crítica formulada por hooks (1994). Para hooks (1994: 198), a "recusa colectiva em reconhecer a institucionalização da supremacia branca encontra-se claramente expressa no modo com se continua a reclamar o mito de Colombo como um 'icón' patriótico". Prossegue hooks (1994: 198) que subjacente à insistência de celebração de Colombo como 'descobridor' da 'América', esconde-se o desafio, o clamar de um patriotismo que reafirme um compromisso nacional com o imperialismo e com a supremacia branca". Tal como Chomsky (1992, 2002) e Zinn (1999, 2001), para hooks (1994) o modo como a história de Colombo tem sido colocada é uma falácia que tem contado com o apoio da escolarização. Argumenta hooks (1994: 202: 203) que a história de Colombo é a história de um assassino, de atrocidades humanas, violação de mulheres indígenas e é precisamente este horror que não nos podemos esquecer e que deve ser "evocado quando de uma forma crítica reflectimos sobre o significado de Colombo [um significado] que falaciosamente tem colocado os povos indígenas como objectos da história e não como sujeitos". Olhar para Colombo de outra forma, prossegue hooks (1994: 203), é, entre outras questões, "romantizar a violação de mulheres e o genocídio do povo índio".
Daí que Freire (2004: 53) nas suas Cartas Pedagógicas reunidas em Pedagogia da Indignação destaque que "nada lhe vem à cabeça quando é questionado sobre os descobrimentos, uma vez que tal não existiu; o que existiu foi uma conquista que deve ser severamente condenada". Assim, e no que tange ao Brasil, para Freire (2004: 54-55), há que celebrar não a invasão, mas a rebelião contra a invasão "celebrando a coragem, a rebeldia, a decisão e capacidade de luta dos que se revoltaram e lutaram contra o invasor, a paixão pela liberdade exemplificada pelos Índios, negros, brancos e mulatos que tinham os seus corpos marcados, os seus sonhos moribundos e as suas vidas roubadas". Importa, assim, repete Freire (2004: 55), "celebrar não a invasão, mas a revolta contra essa mesma invasão". É esta postura que se pretende e advoga para a escolarização pública. No entanto, nas palavras de Macedo (2006: 37-124), e no caso dos Estados Unidos, a escolarização pública tem-se erguido na base da defesa de uma pseudo cultura comum e que se amarra a uma "pedagogia da grande mentira". Para Macedo (2006: 39) 'esta pedagogia' apoia-se muito no que identifica por "manipulação da linguagem [em que] o sistema ideológico doutrinal consegue falsificar e perverter a realidade, tornando possível às pessoas acomodarem a vida na mentira". Esta estratégia ? intencional ? "promove uma cultura de silêncio que participa na construção da percepção de uma cultura comum mítica, negando a existência de diferenciação cultural", postura esta, bem visível no âmbito das próprias políticas educacionais e curriculares. Todavia, e de acordo com a investigação de Gillborn (2005: 486), "vai-se notando uma pressão cada vez maior para 'ver' a política, em geral e as políticas educativas, em particular através de lentes que reconheçam as verdadeiras lutas e conflitos que radicam na medula dos processos através dos quais se moldam as políticas e práticas".
É um facto que sobretudo ao nível da estrutura profunda de análise se nota uma forte contenda entre as análises de Apple (1998), Spivak (1990) e as abordagens de Chomsky (1992; 2002), Zinn (1999, 2001), Todorov (1984), hooks (1994), Freire (2004) e Macedo (2006). Esta contenda aviva provavelmente, entre outras, querelas fortes entre as abordagens de teor mais ortodoxamente marxista e as de pendor mais neo-marxista, mantendo-se uns agarrados à noção prática marxista de 'falsa consciência' e outros a uma noção prática neo-marxista de 'consciência-parcial' ? questão aliás que, entre tantas outras, vincou o debate que dominou o "IV Ciclo de Conferências Políticas Educativas e Curriculares ? Abordagens Críticas e Pós-Estruturais"; "Marxismo e Educação ? Repensar a Educação Pública ? Democracia e Justiça Social" e que, repito, foi naturalmente alvo de uma violenta tentativa de boicote interno, pelas mais variadíssimas razões, qual delas a mais estrábica e provinciana.
Dito de outra forma ? e como tive oportunidade de deixar amplamente analisado em outros espaços (Paraskeva, 2007a; 2007b) - se para Apple (1998) o currículo escolar ao apoiar-se numa determinada selectividade de conhecimento ? em que o caso de Colombo é disso paradigmático - necessariamente não traduz e reproduz uma mentira, para Chomsky (1992; 2002), Zinn (1999, 2001), hooks (1994), Freire (2004) e Macedo (2006), o modo como os conhecimentos curriculares surgem transmitidos é uma manifesta falsidade. Em essência, tais processos de obliteração da verdade ? que cirurgicamente vão urdindo edifícios perigosos ao nível do senso comum -, mais não têm feito do que colocar os saberes da escolarização ao serviço de um processo ininterrupto de (re)construção do ocidente. Perante os argumentos até aqui tratados, como é possível sermos confrontados no dealbar do século XXI com a arrogância salomónica de um manual único de história para os estados membros da EU? Esta questão não é de somenos importância, sobretudo pelo modo como tece os nós que fiam o senso comum multiplicando perigosas literatas. É que é precisamente ao nível do senso comum que se têm travado as grandes batalhas culturais e é por aí que, infelizmente, a direita tem somado pontos. Claramente estamos perante aquilo que Barata-Moura (2007) denunciou como Magna et latebrosa quaestio, questão que trataremos na terceira e última parte das "Mentiras" que a(o)s Professora(e)s vão ter (mesmo de continuar a) de Ensinar".

Referências

Apple, Michael (1993) Official Knowledge. Democratic Education in a Conservative Age. New York: Routledge
Barata-Moura, José (2007) Da Mentira. Um Ensaio ? Transbordante de Errores. Lisboa: Caminho.
Chomsky, Noam (1992) Chronicles of Dissent: Interviews with David Barsamian - Noam Chomsky. Monroe: Common Courage Press, pp., 75-88.
Chomsky, Noam (2002) Legitimacy in History. In P. Mitchell and J. Schoeffel (Eds), Understanding Power. The Indispensable Chomsky. New York: The New Press, pp., 135-137.
Freire, Paulo (2004) Pedagogy of Indignation. Boulder: Paradigm Publishers.
Gillborn, David (2005) Education Policy as an Act of White Supremacy: Whiteness, Critical Race Theory and Education Reform. Journal of Educational Policy, Vol. 20 (4), pp., 485-505.
hooks, bell (1994) Outlaw Culture. Resisting Representations. New York: Routledge.
Macedo, Donaldo (2006) Literacies of Power. What Americans are not Allowed to Know. Boulder: Westview Press.
Paraskeva, João (2007a) Ideologia, Cultura e Currículo. Porto: Didáctica Editora.
Paraskeva, João (2007b) A Educação como Processo de Obliteração Histórica. In Donaldo Macedo e Howard Zinn. Poder, Democracia e Educação. Lisboa: Edições Pedago, pp., 7 ? 21.
Spivak, Gayatri Chakravorty (1990) The Post-Colonial Critic: Interviews, Strategies, Dialogues. Sarah Harasym (Editor). New York: Routledge.
Todorov, Tzvetan (1984) The Conquest of America. The Question of the Other. Norman: University of California Press.
Zinn, Howard (1999) You Can't Be Neutral on a Moving Terrain. In H. Zinn. The Future of History. Interviews with David Barsamian. Monroe: Common Courage Press, pp., 47-75.
Zinn, Howard (2001) On History. New York: Seven Stories Press,


  
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

João Paraskeva
Universidade do Minho
João Paraskeva
Universidade do Minho

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