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Bailarina espancada pelo amante e outros traços
Com a saudade tangida no arame de uma viola da terra, transporto-me para o Verão de 72 e para o Teatro Angrense, quando este espaço era um edifício velho e degradado, uma ruína, pelo menos aos meus assustados olhos de menino de 18 anos, feito actor principal do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, em digressão pelos Açores com o Woyzeck de Georges Buchner, numa encenação de Júlio Castronuovo.
Foi nesse teatro e nesse Verão que vi, pela primeira vez, um homem bater numa mulher. Assustei-me mais por ter percebido que a vida, afinal, não era um faz-de-conta de um qualquer romance de cordel,. Ele tanto a acariciava e lhe dirigia palavras aparentemente apaixonadas como, no momento seguinte, a insultava, esbofeteava e pontapeava. Ela era bailarina da "revista" do Parque Mayer e ele era chulo, disseram-me, mas eu, então, não sabia o que era um chulo.
Tinha só 18 anos, era universitário em Coimbra, integrava o Teatro dos Estudantes e, naturalmente, desprezava os profissionais do Teatro de Revista, uma espécie de Thèatre de Boulevard, que então considerava um género menor, alienado e alienante, cujo reportório parecia um chorrilho de brejeirices medonhas inspiradas na vida de marginais como aqueles que, subitamente, "actuavam" para mim nos bastidores do Teatro Angrense.
Rebobinei tudo isto, em segundos, numa nova visita a Angra do Heroísmo, como jornalista, na comitiva que acompanhou, no Verão de 1999, a digressão do presidente Jorge Sampaio pelos Açores. Da primeira vez, 27 anos antes, o Palácio dos Capitães Generais não estava recuperado, nem Angra tinha ainda sofrido o sismo que quase a destruiu, a 1 de Janeiro de 1980, e que determinou uma reconstrução que ajudaria a classificar como património da Humanidade o centro histórico desta primeira cidade não medieval.
Em 72, sabia-se que Almeida Garrett tinha vivido numa das casas da Rua de S. João, mas pouco mais... Vivia-se um tempo assustador. Uma bailarina do Parque Mayer podia ser espancada pelo amante e nada mais acontecer. Hoje, 35 anos depois, sentado numa das margens destes montes de fogo, vento e solidão que também são estas memórias da minha morte, volto a Angra, agora escudado no imenso talento de uma companheira da minha recente aventura pelos caminhos das artes plásticas.
Respondo assim, com este atraso, a uma enorme generosidade do então presidente Jorge Sampaio ao incentivar-me a dar outra dimensão às crónicas sobre a viagem presidencial aos Açores, que assinei, todos os dias, no Jornal de Notícias. A esta atenuante para este meu atrevimento literário junto ainda a segurança que encontro na parceria com a Maria do Carmo que aceitou desenvolver, em paralelo, uma outra narrativa, com os traços de luz que ela sabe criar.
Às vezes as memórias ganham vida e vida é ter coragem para denunciar, com palavras ou com traços de luz, o caso de qualquer bailarina espancada pelo amante. Así que pasen 35 años.

  
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

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