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Saiu à rua
Com a bebedeira da véspera inscrita na agenda subiu as escadas, pesava o tempo nos pulsos doídos e a palma das mãos tinha o ardor de quem foi ferrado por uma moeda, incandescente num périplo por quantos teimavam em guardá-la, um calendário de fome protegido no estômago afivelado de paciência, e saiu à rua com um selo de receio pela saudação que regurgitava. Ia trôpego na urgência como se acossado por uma culpa que é sempre de outrem, e uma página dependurava rente ao pasmo novidades para que a miopia tinha solução enquanto a cafeína não surtia efeitos. Uma porta sempre aberta para quantos não pudessem reentrar franqueava o reino da boa vontade, um território em que os méritos semeados com adubos de prepotência faziam dobrar o lombo, uma porta para além da qual a tagarelice se fazia em surdina e de soslaio, em que o vinho se destilava num alambique de miragens. Como a de que haveria sempre mais escadarias, e mais e mais até ao triunfo sobre a desilusão, sobre a fatalidade há muito lavrada com tinta de epitáfios colorida de regozijo e banalidades. E haveria mais escadarias pelas alamedas do sonho em cambalhotas de maledicências a bordejar-lhe as rimas, haveria ruas em que imperava limpar cadastros da consciência lançados a uma sarjeta também entupida com confidências para que não chega a voz. Porque os maus hálitos e levavam com o sopro da sua vulgaridade. E o dia virava as costas à idade das coisas, os nomes tinham forma de edital, a honra cedia à súplica e descia do céu uma maquinaria de relógio sincronizada com os degraus mecânicos que iam beijando a preguiça e em que tropeçavam os inválidos. Mais tarde, mais tarde seria tempo de prendas e de recompensas que não chegam, sempre à frente como lebre que faz batota. Ao pino do sol bebia o suor para poupar e abrigava-se da injustiça com toga de palha, rosnava a cada empurrão na iminência de haver ainda ladeiras, com números pares sobre portas seladas, à direita, e letreiros de prestamistas à esquerda. É já ali, ensurdeceu a frase feita. E depois das escadarias com muros a taparem o horizonte, depois das ladeiras, das bebedeiras das fracas figuras, havia candidaturas. Saiu à rua a recolher assinaturas, sem tintas nas lapiseiras e gritos insistentes. É já ali. Declinava a luz e as pernas exaustas eram uma marcha desafinada, uma trovoada de solas sobre as calçadas. Bem junto, havia multidões que saíam elas também à rua, o olhar posto nos tropeções dos destinos, a cafeína assombrando-lhes as manhãs entre portas na pompa do respeito, vidas desfeitas por não conhecerem um outro qualquer mundo, ou sonho, ou grito que dissesse: É já aqui. E os éteres tinham solução para os desgostos, para a invenção de amores nas névoas de quantos não se cruzavam com qualquer amor na vida, davam alento para mais um patamar da rotineira deserção. E pela calada fugia, escada acima na voraz corrida contra a noite, e subia, subia. E entretanto o dia renascia traiçoeiro nas costas da ousadia, agarrava pelo fundo das calças qualquer veleidade em encolher a imensidão do silêncio, no reino em que alguém dava alvarás para construir habitações sobre jardins regados, não já de prepotência, mas para colher a maior mancha de esperança, que se usa dizer é verde como o que cresce com a imaginação de uma criança. E que cresce como a poesia desalinhada, sem rima nem mestre perante a força da sua vertigem em alamedas, e nos interstícios das pedras da escadaria. E subia, corria, encharcava a entranha da mentira de que fugia. Saiu à rua com o peso de não a reconhecer como uma toca que abriga doutros suores, com mais sabor na intimidade de secretas alegrias e afrontas ao largo pântano em que se esconde o átrio da escadaria. Saiu de braço dado com o vizinho, com quem se cruzou enquanto ele descia do pedestal em que fazia as diurnas nuvens, numa tela para que não há nome, e com que afinal ninguém se importava senão quando chovia. Saiu à rua um povo, esquecido de ter habitado uma rua com nome de liberdade, despejado no próprio reino que paga com a elevação própria da dignidade. Saiu e há-de sair como já saiu um dia.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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