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Confiar é preciso, confidente precisa-se

Olá primo?estás fixe, meu?? Agora também já tenho o meu hi5. Já pus lá umas fotos?Ah, já sabias e já foste ver? Achas que estou porreiro? Diz lá se não pareço muito mais velho? As miúdas nunca vão descobrir que só tenho 13 anos. Claro que só ponho assim a camisa aberta e colarinhos levantados quando a minha mãe não vê, é que ela acha tudo mal! ?Aqueles óculos escuros dão muito?muito jeito.
Pois, sou eu que penteio o cabelo. A minha mãe diz que tem muito gel mas é assim que fica fixe. Também não posso ir assim para a escola senão a profe vai logo dizer à minha mãe e até o mauzão da portaria ainda pode chibar aos meus pais?Não que eu, quando saio de casa, tenho cuidado, vou com a camisa toda abotoadinha, e pego na mochila nos dois ombros como o meu velhote quer?mas depois é que mudo um bocado?senão estás a ver, fico mesmo um betinho?a minha mãe até disse que eu tenho que ir sempre de camisa para não me confundirem com os outros que até vão de «tee-shirts» porque ela pensa que esses é que são «gunas», mas não são, pelo menos não são todos?então eu levo uma «tee-shirt» escondida na mochila, que pensas? Mas disto a minha mãe também não pode saber?foge, que ela é mesmo chata com isto?mesmo se eu tiro boas notas?ela quer que eu esteja sempre todo arranjadinho?parece que nem percebe que eu já não sou um puto.
Mas sabes, eu agora até tenho um segredo. Mas é mesmo um segredo, meu. Não podes dizer nada?não, não é isso de fumar, prontos que eu até já experimentei mas não estou nessa?É outra coisa?Sabes que no meu hi5 pus lá a fotografia da minha namorada? Ela é muito gira não achas? Ela pensa que eu ando no 10º ano e eu disse-lhe que sim?e ela acha que eu estou muito «nice» na minha fotografia que é a tal em que estou de óculos escuros e tudo?estou mesmo com pinta?; e há outras coisas que depois te conto só que também não posso dizer nada em casa, foge, ficava tudo maluco?ia ser para lá um drama do caraças...
Mas sabes, agora o segredo maior de todos é uma coisa que vai acontecer amanhã à noite que essa é que ninguém pode mesmo saber, só tu, porque sei que não vais dizer nada a ninguém?Até fico nervoso a pensar nisto mas vai ser o máximo; eu nem sei muito bem como é que vou fazer para sair mas se calhar vou dizer que estou a estudar em casa do Pedro?É uma coisa que combinámos todos e que tem que ser às escondidas?amanhã à noite vamos fazer um «graffitti»; já comprámos os materiais e arranjámos umas roupas «fixes» para se nos sujarmos?O Márcio é que sabe melhor porque ele já fez muitos com o irmão e faz muitas vezes uns «tags» só dele. Ele faz e depois foge a correr porque é em casas que estão habitadas e com guardas ou pessoas a viver lá.
Mas desta vez é diferente. A gente vai para uma fábrica abandonada em Gondomar, que está com muitas silvas à volta e ninguém nos vai ver. Vamos pintar umas coisas muito altamente e eu até já tenho um projecto e tudo?, com muita pinta, acho que vai ficar espectacular?Se tirar umas fotografias depois posso por no meu hi5?T'as a ver o show que vai ser e quando a gente passar por lá e só nós é que vamos saber que fomos nós que fizemos aquilo?que só se vê um bocado mas mesmo assim vai ser o máximo?
Depois eu conto-te como foi, e já sabes?não podes contar a ninguém, primo, que isto é mesmo um grande segredo, tchau.
Neste telefonema em que falava com o primo de quase 30 anos, o adolescente deixava fluir as suas preocupações, projectos, ideias de adolescente inquieto, procurando entre alvoroço de descoberta e pequenos passos de ousadias insuspeitas, a sua afirmação ou a sua construção identitária, a afirmação de quem não quer ser confundido com betinho. A cumplicidade era a palavra-chave, o segredo partilhado, a proibição, o adolescente que cresce na construção dos seus segredos, na procura do seu lugar no mundo dos jovens adultos de que se apercebe, a referência que se vai aproximando.
Era a cumplicidade e a solidariedade porque é bom ter em quem confiar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 168
Ano 16, Junho 2007

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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