O Novo Estatuto da Carreira Docente e o modelo de formação implícito
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As novas disposições político-administrativas e financeiras introduzidas no sistema educativo por força da revisão do Estatuto da Carreira Docente, recentemente aprovado, visam alterar substancialmente as condições materiais de trabalho e, em consequência, não podem deixar de afectar, substancialmente, o desenvolvimento profissional dos professares e educadores. O seu universo simbólico, o sistema de relações profissionais, o quadro de valores subjacente ao trabalho pedagógico irão, assim, confrontar-se com uma nova lógica de acção cujo sentido será dominado inevitavelmente pelo jogo da competição, transformado em valor supremo do sistema educativo, dada a função redentora de que vem investido. Neste quadro de fundo, a questão da formação contínua adquire uma nova centralidade, seja qual for a perspectiva que se adopte para definir a sua função. O que é naturalmente esperável é que o sistema ora implementado faça valer as suas virtualidades "intrínsecas" que vão no sentido de valorizar as competências científico-técnicas inerentes às condições de "desenvolvimento" individual da carreira, o que se traduzirá na consagração de um modelo de formação cujas componentes tenderão a ser definidas do lado de fora das condições do exercício profissional e em obediência a referentes cognitivos, cuja legitimidade "teórica" reflectirá mais o sentido das necessidades do sistema que as "necessidades" dos sujeitos da formação. O reforço claro de uma cultura de competição que passará a estruturar toda a carreira profissional, sujeita doravante a um trabalho de vigilância e de registo avaliacionista permanente ? o termo avaliação ocorre no texto do novo Estatuto 149 vezes, enquanto que o do "desempenho" consegue chegar às 86 vezes - determinará fatalmente da parte dos professores e educadores uma estratégia formacional que se ajuste aos novos critérios de valorização profissional que, como é patente no corpo do documento em referência, promove o recurso ao "portfolio" como um elemento fundamental da nova cultura profissional. Uma cultura alternativa da formação contínua pressupõe o referencial da autonomia profissional como a dimensão estruturante da prática. Desta forma, o que está em causa face à institucionalização da nova carreira é, justamente, a questão da autonomia profissional dos professores e educadores. Convém, entretanto, prevenir que, com esta referência, não se tem em mira agitar mais uma bandeira. A autonomia profissional no quadro do trabalho educativo é bem mais uma exigência ontológica e ética da acção profissional que um adereço estatutário. Ela corresponde, no plano do exercício profissional responsável, ao que constitui, hoje, a complexidade da acção profissional face aos contextos actuais das condições de trabalho. É indispensável lembrar essa complexidade quando as opções políticas dominantes supõem uma concepção do exercício profissional como um regime de aplicação instrumental de competências apenas dependente do acréscimo cumulativo de saberes diplomados. Esta visão da prática e da formação profissional apenas agrava os problemas profissionais, porque contribui para iludir a incompetência própria face à complexidade da realidade pedagógica. É hoje pacífico no plano da formação profissional que os saberes com relevância profissional são saberes híbridos, transformáveis e transformados na situação. Assim, não há tecnicismo que resolva as imprevisibilidades, as instabilidades, as heterogeneidades que ocupam o quotidiano profissional. O recurso ao cognitivo, ao prático-normativo, ao relacional e ao expressivo, num regime de permeabilização sistemático, impõe-se como alternativa à modalidade tecnicista dominante. A consciência de que estes domínios do saber são entidades intercondicionantes e interdependentes, - isto é, que os saberes cognitivos são perpassados por interesses práticos e por valores afectivos e culturais e vice-versa - constitui uma condição fundamental de desenvolvimento de modelos de profissionalidade docente que assegurem no processo de aprendizagem a articulação entre o ser, o aprender e o saber. O aprender é também uma forma de desenvolvimento do ser, não é um fenómeno que lhe seja exterior; por isso o ser (as condições reais de existência, o "mundo da vida") não pode ser indiferente ao processo e aprendizagem. É nesta perspectiva que "os profissionais da educação renunciam a uma "competência" fundada essencialmente na qualificação pelos diplomas para desenvolver uma competência profissional fundada sobre um retorno reflexivo sobre a experiência" no dizer de Agnès VAN ZANTEN e Marie-France GROSPIRON (2001). Ora, esta possibilidade só ocorre no interior da própria prática profissional e num contexto de trabalho onde a autonomia seja assegurada, isto é, onde esteja garantido o exercício da consciência crítica sobre os "erros" próprios e alheios. Entenda-se que estes "erros" só o serão à medida que se desenvolva a consciência da sua ocorrência. Isto é, estes erros não são erros no sentido cognitivo, no sentido de falta de conformidade entre os elementos que constituem um enunciado formal com pretensão de verdade; são antes "erros" que se revelam à acção e, portanto, inverificáveis antes da acção ? porque é a acção que se revela inadequada, quando sobre ela incide o trabalho da reflexão. Como parece evidente, uma cultura profissional que se queira enformada por tais princípios, condição de uma prática solidária, crítica e autónoma irá litigar indefinidamente com o mundo do novo Estatuto...
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Junho 2007
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Autoria:
FPCE, Univ. do Porto
FPCE, Univ. do Porto
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