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Má alimentação escolar estimulada nos bufetes e máquinas de venda automática

PELA BOCA MORRE O PEIXE 

A obesidade e os distúrbios alimentares atingem um número cada vez maior de jovens portugueses. Cerca de 30 por cento das crianças entre os sete e os onze anos têm excesso de peso. A alimentação desequilibrada e a falta de exercício físico são apontados como as principais causas para esta situação, que começa a atingir níveis preocupantes e ganha mesmo contornos de epidemia.
A par dos pais, a escola é vista como o principal veículo de formação para uma alimentação equilibrada e saudável. Mas, afinal, que tipo de hábitos alimentares promove a escola e qual a qualidade da oferta disponibilizada nas cantinas e bufetes? Que medidas estão a ser tomadas para tentar inverter as origens deste problema?
A PÁGINA procura neste "Em Foco" responder a estas e outras questões, divulgando conclusões de alguns estudos sobre a matéria e questionando duas especialistas em nutrição. Falámos também com alguns alunos e professores para tentar determinar até que ponto uns e outros se preocupam, de facto, com a necessidade de uma alimentação equilibrada.

Nutricionistas criticam "contra-senso" da oferta alimentar presente nas escolas

Um estudo divulgado em Março passado pela Associação Internacional para o Estudo da Obesidade referia que as taxas de obesidade infantil vão aumentar em quase todo o mundo nos próximos quatro anos, em particular nos países industrializados. Nessa altura, segundo este organismo, cerca de 38 por cento dos jovens da União Europeia terão excesso de peso, percentagem que se elevará a 41 por cento nos países mediterrânicos.
Outros dados, desta vez da Comissão Europeia, divulgados em 2005, indicam que Portugal está entre os países europeus com maior número de crianças com excesso de peso, a par de Malta, Espanha e Itália. Nestes quatro países, o problema atinge cerca de 30 por cento das crianças com idades entre os sete e os 11 anos. "Os níveis de excesso de peso e de obesidade entre as crianças no Sul são superiores aos do Norte da Europa à medida que a tradicional dieta mediterrânea é substituída por alimentos mais ricos em gordura, açúcar e sal", diz a International Obesity Task Force, organismo que aconselha a Organização Mundial de Saúde e a União Europeia em matéria de nutrição. Em Portugal, estima-se que 3,5 por cento das despesas totais de saúde pública estejam relacionadas com doenças provocadas pela obesidade.
Perante estes números preocupantes, o papel da escola na oferta de uma alimentação equilibrada e na promoção de hábitos alimentares saudáveis assume uma importância crescente. Porém, como mais à frente se verá, a teoria não vai necessariamente correspondendo à prática.
O fornecimento de refeições nas cantinas das escolas portuguesas varia em função do modelo estabelecido por cada direcção regional de Educação (DRE). A escolha das ementas é feita através de dois processos distintos. Nos refeitórios de gestão concessionada, as DRE abrem um concurso público e as empresas concorrem à sua exploração. As ementas têm uma margem de manobra limitada, pois as capitações estão previstas à partida. As ementas são ratificadas pelas DRE e aprovadas pelo órgão de gestão da escola. Nos refeitórios de gestão directa a ementa é elaborada pelo próprio órgão de gestão ou pelo técnico do SASE, mediante referenciais estabelecidos pelo ME que definem a quantidade e a qualidade alimentar. Em ambos os casos, o parecer técnico dos nutricionistas na elaboração das ementas não é considerado uma condição indispensável na prestação deste serviço.
De acordo com o gabinete de comunicação do ME, apenas nos refeitórios de gestão concessionada é "feita diariamente uma recolha de amostras das ementas servidas para controlo de qualidade", estando em preparação, segundo a mesma fonte, um documento orientador do funcionamento dos refeitórios.
Apesar de não dispor de dados que lhe permitam fazer uma avaliação rigorosa da qualidade da oferta alimentar disponibilizada pelas escolas portuguesas, Bela Franchini, nutricionista e docente da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, parte da sua experiência de formação no terreno para afirmar que, nos casos de gestão directa das escolas, a grande maioria dos funcionários responsáveis pela manipulação e confecção dos alimentos "não tem formação específica neste domínio". Desta forma, assegura, "não é possível garantir a máxima qualidade na prestação do serviço".
Ainda assim, garante existir uma "crescente preocupação" por parte dos conselhos executivos relativamente a esta matéria, havendo mesmo escolas que, embora esporadicamente, manifestam interesse em disponibilizar formação aos pais e encarregados de educação. O mesmo se aplica às empresas do sector, que, na sua opinião, revelam um crescente cuidado com a qualidade nutricional da alimentação que fornecem.
Mas estes são factores que, diz Franchini, dependem, em última análise, das regras de conduta interna de cada operador, muitas vezes sacrificadas em prol da "obtenção de lucro". Para garantir que não seja este o princípio prevalecente, Bela Franchini defende a criação de um organismo público que regulamente esta actividade e estabeleça práticas e normas de qualidade comuns a todos eles.
O Ministério da Educação, através da Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular, garante que no próximo ano lectivo deverá avançar com um novo modelo de formação, centrado em segurança alimentar e alimentação saudável.

Cantinas chegam ao primeiro ciclo

A taxa de cobertura de cantinas escolares varia consoante os diferentes níveis de ensino. Se no 2º e 3º ciclo do ensino básico e no ensino secundário essa oferta está generalizada (de acordo com o gabinete de comunicação do ME são menos de cinco por cento as cantinas que não estão actualmente em funcionamento, por motivos de obras ou de remodelação), no 1º ciclo ela praticamente não existe.
Valerá a pena recordar que em 1984 o governo transferiu para os municípios competências em matéria de acção social escolar, nomeadamente o fornecimento de refeições. O artigo 7º, aliás, explicita que "a gestão dos refeitórios escolares é da responsabilidade das câmaras municipais". Muitas autarquias, no entanto, argumentam que não conseguem suportar os encargos daí decorrentes e queixam-se de nunca ter sido definido um modelo de financiamento que as ajudasse a acautelar a prestação deste serviço.
Para contrariar aquilo que o próprio primeiro-ministro havia já considerado como uma "situação vergonhosa", o governo avançou, no ano passado, com o Programa de Generalização de Refeições Escolares no 1.º ciclo, através do qual cerca de 70 por cento dos alunos passou a poder almoçar nos estabelecimentos de ensino. Dos 278 concelhos do país, 224 apresentaram candidaturas, que prevêem a possibilidade de parcerias com agrupamentos de escolas, associações de pais ou entidades "que reúnam requisitos necessários à apresentação de projectos".
Segundo os dados divulgados pela tutela, o programa abrange 55 por cento dos estabelecimentos de ensino do país, frequentados por mais de 310 mil alunos. Das 4.033 escolas abrangidas, apenas um quarto cumpria a legislação e servia almoços às crianças. O valor da comparticipação por aluno/refeição foi fixado em 58 cêntimos. As refeições custam 2,50 euros, dos quais 1,42 euros são pagos pelos alunos, um valor igual ao praticado nas escolas do segundo e terceiro ciclos. O valor da comparticipação familiar, no entanto, pode variar em função do rendimento do agregado familiar, sendo cada autarquia soberana na determinação desse montante.
Apesar desta melhoria, continua a não existir legislação que regule a alimentação servida nas cantinas escolares até ao final do 1.º ciclo.
No ensino superior, o fornecimento de refeições é da responsabilidade do departamento de Acção Social das respectivas universidades. De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Ciência e Ensino Superior, o número de lugares nas cantinas e bares universitários cresceu de cerca de 23500, em 1998, para mais de 31 mil em 2003, com mais de 10 milhões de refeições servidas anualmente. Cada refeição social custa em média 4,6 euros, com o Estado a comparticipar com um valor médio de 2,8 euros e o estudante 1,8 euros.

Como se come nas escolas?

Em Setembro de 2005, a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO) analisou quase três mil ementas escolares servidas ao longo de três semanas em 198 escolas do segundo e terceiro ciclos do ensino básico e do ensino secundário. De acordo com as conclusões deste levantamento (o único em grande escala realizado nos últimos anos e que pretendeu servir de amostra representativa das cerca de 3200 escolas existentes no país) a maioria das refeições servidas nas cantinas escolares era "equilibrada", apesar de em algumas se abusar da carne de vaca e de porco, das frituras e dos doces.
O estudo revelou, por exemplo, que apesar de o peixe predominar às refeições, na maioria das vezes era frito e a sua diversidade reduzida. De uma maneira geral, aliás, os fritos eram uma opção recorrente (30 por cento) no conjunto das refeições escolares, utilizada na maioria das cantinas entre duas a cinco vezes no período considerado, quando, na opinião da DECO, o ideal seria apenas uma vez.
Relativamente ao acompanhamento do prato principal, as batatas predominavam (43 por cento) relativamente ao arroz, à massa e aos legumes, e as leguminosas (tal como o feijão e o grão) eram relegadas para último plano. Apenas em nove por cento das escolas os legumes faziam parte da refeição diária.
Para a sobremesa, 60 por cento dos refeitórios analisados serviam fruta crua (em geral maçã, pêra e banana), mas também apresentavam como opção doces como o leite-creme, o arroz-doce, a mousse ou a gelatina, alimentos que contêm um alto teor de açúcar.
Uma das notas positivas do estudo ia para o facto de a sopa estar sempre presente nas ementas. Os legumes eram a sua principal componente (77 por cento), embora por vezes em pouca quantidade, mas já as leguminosas não eram incluídas na grande maioria. Pouco mais de 40 por cento das escolas que integraram o estudo serviu este tipo de sopa três vezes ou mais em três semanas.
Já em Novembro do ano passado, a DECO visitou trinta estabelecimentos de ensino pré-escolar em Lisboa e no Porto, tendo constatado a utilização excessiva de carnes vermelhas, pouca frequência de peixe e de legumes. Ainda assim, referia a organização, havia "progressos positivos" em relação ao estudo de 2005, nomeadamente a menor utilização de batatas fritas como acompanhamento e a diminuição dos doces à sobremesa.
Um outro estudo, conduzido em 2004 por Elisabete Ramos, investigadora da Faculdade de Medicina do Porto, concluía que um terço dos cerca de dois mil alunos de 46 escolas básicas do segundo e terceiro ciclos da cidade consumia quantidades de gordura superiores aos recomendados para a idade e que os alimentos vendidos nos bufetes e nas máquinas de venda automática dos estabelecimentos de ensino tinham "uma grande disponibilidade de produtos ricos em gordura e açúcar e uma presença muito pequena de alimentos saudáveis".

Bufetes e máquinas de venda automática são um "contra-senso"

É precisamente aqui que as duas nutricionistas ouvidas pela PÁGINA concordam que reside a fonte do problema. Tendo em conta que as cantinas apresentam níveis bastante satisfatórios de qualidade nutricional, é pelos bufetes e pelas máquinas de venda automática instaladas nas escolas ? que vão sendo uma fonte de rendimento acrescido para os depauperados orçamentos escolares - que deve passar a mudança.
"Não consigo perceber como é que as escolas continuam a oferecer nos bufetes e nas máquinas de venda automática os mesmos produtos que os professores dizem na sala de aula que não devem ser consumidos. Isto é o maior contra-senso que pode haver", diz Paula Veloso, ex-professora e nutricionista clínica (ler entrevista nas páginas 11 a 13). Bela Franchini, por seu lado, afirma que a solução não passa por retirar as máquinas das escolas mas sim "ter em atenção o que se disponibiliza". Em último caso, "os órgãos de gestão das escolas é que devem decidir o seu conteúdo", acrescenta.
Neste domínio, a Secretaria Regional de Educação da Madeira deu um bom exemplo ao implementar a denominada "Rede de Bufetes Saudáveis Escolares". Este projecto, que teve início em 2001/2002 e é actualmente aplicado de forma voluntária em vinte escolas, pretende "regulamentar" de forma pedagógica a oferta alimentar disponibilizada nestes espaços, envolvendo os alunos na definição das ementas e na própria preparação dos produtos.
De resto, a oferta alimentar nos infantários públicos e nas escolas do 1º ciclo do ensino básico do arquipélago é, desde há algum tempo, acompanhada por nutricionistas que emitem normas orientadoras adequadas a cada ciclo, a que se juntam iniciativas no sentido de incentivar as escolas do 2º e 3º ciclos e ensino secundário a desenvolverem programas de Educação Alimentar.
Já no continente, as escolas passaram recentemente a dispor de indicações sobre a alimentação que deve ser fornecida aos alunos nos bufetes através do "Referencial para uma Oferta Alimentar Saudável", publicado pela Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular, elaborado em parceria com a Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, a Deco e o Instituto do Consumidor.
Entre os alimentos recomendados neste documento, que brevemente será seguido de outros mais específicos, nomeadamente aplicados às ementas das cantinas, destacam-se o leite e os iogurtes meio-gordos ou magros, os sumos de frutas naturais, o pão feito a partir de farinhas pouco refinadas, a fruta fresca da época e os produtos hortícolas. Entre os géneros alimentícios a não disponibilizar salientam-se os fritos (rissóis, croquetes, pastéis de massa folhada), os produtos de charcutaria ricos em lípidos e sal (chouriço, salsicha, mortadela, entre outros), os refrigerantes, as batatas fritas, os hambúrgueres, os cachorros quentes, as pizzas e as guloseimas.
De acordo com as recomendações constantes neste referencial, os bufetes deverão constituir-se como um espaço complementar e não como alternativa ao refeitório escolar. Para que tal não aconteça, as escolas devem oferecer refeições não só equilibradas do ponto de vista nutricional mas também agradáveis e apelativas, de modo a contrariar o apelo das refeições "fast-food".
"A médio prazo será a vez das cantinas. Mesmo quando nutricionalmente equilibradas, muitas das ementas deverão, a meu ver, ser revistas, porque não satisfazem o paladar dos alunos", diz Paula Veloso, que sugere a criação de "equipas multidisciplinares" que possam construir "referenciais que não se limitem a servir de meras sugestões técnicas".


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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