Página  >  Edições  >  N.º 167  >  Aventuras com ideias

Aventuras com ideias
Cinquenta anos depois da história contada magistralmente por Manuel de Oliveira em Aniki-Bóbó, parece que a atracção da linha de comboio, do monstro de ferro que passa veloz, ainda se mantém. Para as crianças, traquinices e aventuras parecem sobreviver coexistindo com as séries de televisão, as «play stations», os videojogos, a procura dos centros comerciais, a lógica dominante consumista do Século XXI. Quando parece não haver lugar para uma aventura pode sempre inventar-se...
Tinha pedido àqueles alunos, de uma escola no centro da cidade do Porto, que me encontrassem, entre os seus objectos comuns, como paus de gelado ou molas da roupa, algo que servisse de pequenos «teques» para modelar o barro e que pudéssemos utilizar nas aulas.
Alguns dias depois chegaram, cheios de entusiasmo, de ideias e de «teques»...
Estavam ali diante de mim, de olhos brilhantes, esperando a minha reacção ao "trabalho de casa".
De facto eram uns «teques» espantosos, de metal, e que podiam ser quase umas navalhas. Intrigada perguntei-lhes onde e como os tinham arranjado. Entreolharam-se, riram-se entre eles, comprometidos, trocaram sinais, e finalmente um deles lá disse:
? Fomos nós que os fizemos...
? Pois foi, stora, tivemos esta ideia...
? Que ideia?
? Olhe, foi assim, nós tivemos esta ideia porque o meu irmão até faz isto para fazer navalhas e medalhas que depois leva para a Ribeira e a minha mãe uma vez que soube, até disse que lhe batia e tudo se soubesse que ele voltava a fazer isto, mas está claro que ele voltou a fazer e depois eu lembrei-me?Mas a minha mãe não sabe, está visto?
? Pois foi, stora, quando o Marco nos disse, nós lembrámo-nos logo e então fomos ali à drogaria do fim da rua e a verdade é que não conseguimos sacar os pregos que queríamos, então depois fomos às obras, aquelas lá em cima, depois da rampa, que até estão a demolir uma casa, e arranjámos muitos mais pregos?daqueles grandes, meia galeota?
? Pois foi, depois fomos para ali, abaixo do Colégio dos Órfãos, sabe, nas Fontaínhas? Fomos para lá para a linha [que une S. Bento a Campanha], e púnhamos os pregos na linha e quando o comboio passava ficavam tão fixes?
? E foi assim que fizemos estes todos?
Fiquei gelada. Ali, na minha frente, uma dezena de miúdos que confessavam, entre matreiros e divertidos, que tinham corrido o risco de irem para a linha do comboio para me satisfazerem, para dar resposta a um pedido meu. Quem se poderia lembrar?...
O interdito fora procurado, a regra violada, a interdição desafiada, a satisfação ou o gozo de fazer o proibido tinham sido conseguidos mas sempre com o álibi de satisfazer o pedido da professora. E a verdade é que o resultado tinha sido eficaz?mas ao preço de que riscos?
Explicar-lhes que o que tinham feito era inaceitável, porque infringiam normas e corriam riscos, até era aparentemente fácil. Mas fazer desaparecer o prazer do risco e a sedução da aventura não era assim tão fácil. As aventuras podem sempre inventar-se e a atracção pela linha de caminho de ferro estava ali, à mão de semear...

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo