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"A escola tem de garantir aos alunos não só uma boa nutrição como o prazer de comer"

Paula Veloso, nutricionista, em entrevista à PÁGINA, fala-nos dos hábitos alimentares dos portugueses e dos caminhos para os tornar mais saudáveis.

Licenciada em Ciências da Nutrição pela Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, Paula Veloso exerce, desde 1991, actividade na área da nutrição clínica, privilegiando na sua abordagem a educação alimentar e a gastronomia, que considera "meios indissociáveis de uma dieta saudável e de uma vida com qualidade". Antes de enveredar por esta área foi professora do ensino secundário. Publicou dois livros - "Dietas sem dieta" e "Dieta sem castigo", este último versando a obesidade infantil. O primeiro foi "best-seller", tendo vendido até ao momento 34 mil exemplares. O segundo, que saiu em Junho, vendeu, até agora, cerca de cinco mil exemplares.
Participou ao longo de um ano no programa da RTPN "Utilidades", na rubrica de nutricionismo. Colabora quinzenalmente na página web da Porto Editora e trimestralmente na revista "2 Pontos", responsabilidade desta editora e destinada, sobretudo, a professores. Participa regularmente em acções de formação e de esclarecimento em escolas e em iniciativas relacionadas com o tema da obesidade, tanto em crianças como em adultos.
Nesta entrevista, questionamo-la, entre outros temas, sobre os hábitos alimentares dos portugueses e sobre o papel da escola na formação de hábitos alimentares saudáveis. Apesar de acreditar que as cantinas das escolas portuguesas fornecem uma alimentação equilibrada, Paula Veloso considera que deveria haver um maior esforço no sentido de diversificar a oferta e garantir aos alunos o "prazer de comer".

De uma forma geral, os portugueses comem bem ou mal?

Os portugueses têm todas as condições para comer bem. Diria mesmo que somos um povo privilegiado, já que o país produz um leque bastante diversificado de alimentos que nos permitem ter uma alimentação saudável. O que a maioria das pessoas não sabe é aproveitá-los. O que se verifica hoje em dia - e que infelizmente está a conduzir a um surto de obesidade ? é que, além de comprarmos tudo aquilo que nos impingem de fora, as pessoas recorrem de forma crescente aos alimentos pré-cozinhados, que têm pouco valor em termos nutricionais, são caros e geram desperdício de embalagens.

A cozinha tradicional portuguesa é habitualmente associada a uma alimentação rica em gorduras...

Não concordo necessariamente com essa opinião. Apesar de a cozinha tradicional portuguesa estar habitualmente associada a pratos como o cozido, os rojões, a feijoada, compostos por uma grande variedade de carnes gordas, há bastantes exemplos na nossa gastronomia, do norte ao sul do país, que têm bastante qualidade do ponto de vista nutricional e alguns deles são muito fáceis de preparar.

Pode referir alguns exemplos?

É o caso das sopas, por exemplo, que podem funcionar como um prato completo, dos ensopados, das cataplanas de peixe e marisco, entre muitos outros. E mesmo o cozido, os rojões e a feijoada podem ser adaptados a uma cozinha saudável, desde que na sua preparação se incluam ingredientes e gorduras que não sejam prejudiciais à saúde.
Há cerca de um mês fui convidada para participar num congresso de gastronomia do Alto Minho - até há uns anos era impossível pensar que um nutricionista pudesse participar num evento desta natureza -, facto que revela uma certa desmistificação na relação entre a cozinha saudável e a gastronomia tradicional portuguesa.

Nos últimos anos o vegetarianismo tem vindo a cativar um número crescente de pessoas por estar associado a uma alimentação mais saudável. Esta ideia é verdadeira?

O vegetarianismo ? e refiro-me concretamente ao ovo-lacto vegetarianismo, porque o veganismo (alimentação que exclui o consumo de carnes, ovos e produtos lácteos) é uma prática alimentar que considero muito fundamentalista, já que implica recorrer às farmácias ou às lojas de produtos naturais para suprir determinadas carências alimentares sob a forma de suplementos, nomeadamente de vitamina B12 - pode ser uma opção interessante, mas não é melhor nem mais completa, por exemplo, do que a alimentação mediterrânica. De resto, a nossa alimentação omnívora peca sobretudo pelo excesso de consumo de produtos cárneos.

O que é preciso, então, é saber equilibrar a nossa alimentação...

Sim. É evidente que esse equilíbrio varia conforme as correntes, mas hoje em dia sabe-se que a ingestão excessiva de produtos cárneos está associado a doenças cardiovasculares e a determinados tipos de cancro, nomeadamente do cólon.
Porém, e voltando ao tema da obesidade, nem mesmo os vegetarianos estão livres de terem excesso de peso. Apesar de os ingredientes que compõem uma salada, por exemplo, terem habitualmente uma baixa quantidade de calorias, se esta for regada com azeite passa a constituir uma refeição hipercalórica. Uma chávena almoçadeira preenchida de legumes tem em média 20 ou 30 calorias, mas se lhe acrescentarmos uma colher de sopa de azeite, que não lhe altera o volume, passamos a ter 150 ou 160 calorias.

Não recomenda temperar uma salada com azeite?

Recomendo, mas com conta, peso e medida - como se costuma dizer. As pessoas sabem que o azeite é uma gordura saudável, pensam que ele não engorda e que, por essa razão, se pode utilizá-lo em grande quantidade. Mas não é apenas o azeite, habitualmente exagera-se nas quantidades de qualquer gordura.
Muitas pessoas, por exemplo, comem cozidos para evitar utilizar gordura, mas, como a comida fica com pouco sabor, na altura de a temperar regam o prato ? o termo costuma ser esse, "regar o prato" ? com azeite. Ou seja, acabam por ingerir uma brutalidade em calorias. Essa é uma das razões pela qual não costumo recomendar os cozidos para uma dieta.

O que costuma sugerir?

Na nossa cozinha temos, entre outros, as caldeiradas e os ensopados, nos quais se podem utilizar ingredientes como cebola, alho, tomate, pimento, louro, que, além de terem vitaminas e minerais, lhes conferem um sabor e um colorido fantástico e praticamente não têm calorias. Pode-se usar e abusar deles. Além de que permitem utilizar quase todos os alimentos da roda dos alimentos - proteínas como a carne, o peixe ou o marisco, hidratos de carbono como a batata, o grão, o feijão, os vegetais, o azeite. Ou seja, consegue-se reunir no mesmo prato um conjunto muito saudável de alimentos.

"Gerações mais novas são vítimas de um marketing extremamente agressivo"

Porque razão estamos geograficamente situados numa zona de influência mediterrânica ? considerada, porventura, uma das mais saudáveis e equilibradas - mas isso não se reflecte na nossa gastronomia?

Nós temos uma cozinha de características mais atlânticas do que mediterrânicas. No entanto, temos disponíveis no nosso país praticamente todos os produtos utilizados na cozinha mediterrânica. Não sei explicar porque razão não recorremos mais a esses ingredientes, mas se utilizássemos mais e melhor alimentos aqueles como a fruta, os frutos secos e os legumes, igualmente associados à cozinha mediterrânica, não estaríamos muito mal. O problema é que hoje em dia se está a trocar este tipo de dieta pelo consumo exagerado de "fast-food", seja ela os hambúrgueres e as batatas fritas seja as refeições embaladas.

Os hábitos e a disponibilidade são diferentes hoje do que eram há algumas décadas...

Sim, de facto as pessoas hoje têm pouco tempo para cozinhar e, além disso, a maioria não sabe cozinhar de uma forma rápida sem recorrer aos fritos. Esta afirmação pode parecer generalista, mas é isso que venho constatando, desde há muitos anos, na minha prática profissional. Eu cozinho tudo ultra rápido e nunca utilizo frituras. No fundo, tudo se resume a uma questão de conhecimento e de prática.
Além disso, há uma espécie de estigma, herdado provavelmente das gerações das nossas mães e avós, em torno da hora das refeições: a comida tem de estar na mesa invariavelmente à mesma hora, nem que para isso seja preciso correr-se e suar-se... E isso condiciona imenso a preparação dos alimentos.
Depois, muitas receitas tornam-se fastidiosas pela quantidade de ingredientes que incluem. O tempo que se queria poupar a cozinhar perde-se muitas vezes só na sua preparação... E muitos deles só se encontram nas grandes superfícies, quando a única vantagem dos hipermercados é permitir andar bastante a pé, o que é óptimo para fazer exercício. Para fazer uma boa refeição basta aquilo que habitualmente se encontra na mercearia local. Ingredientes muito básicos e cozinha muito simples, com sabor e cor. Isso é o fundamental.

Antigamente, a sopa estava associada às camadas mais pobres da população. E esse estigma mantém-se, em certa medida, até hoje, apesar de se saber que é um elemento essencial na nossa alimentação...

Sim, a sopa, talvez por essa conotação, deixou de ser consumida por muita gente, inclusivamente pelas pessoas mais desfavorecidas que, por esse meio, tentam afirmar um certo estatuto social. E isso é válido também para o pão, considerado um alimento menos nobre e muitas vezes substituído por pães com chocolate, folhados e outros produtos semelhantes. A sopa era de tal maneira importante que a refeição era constituída pela sopa e... pelo resto. O que significa que ela tinha o papel principal.

Pensa que essa imagem se está a alterar?

Sim, há alguma melhoria, visível, nomeadamente, pelo facto de os centros comerciais disporem agora de lojas que vendem exclusivamente sopas. Porque é um alimento que as pessoas têm noção que é saudável e barato. Lentamente ela tem vindo a ser reabilitada, sobretudo nos almoços fora de casa. É uma excelente forma de consumir fibras e água.

Acha que as novas gerações estão mais conscientes para a importância de hábitos alimentares saudáveis? Informação, pelo menos, não falta...

Não me parece que haja esse tipo de consciência, e considero que as gerações mais novas são, de certa forma, vítimas de um marketing extremamente agressivo. Alguma coisa tem de ser feita relativamente a isso. A grande maioria dos pais não teve acesso a informação que lhes permita avaliar de forma criteriosa aquilo que é oferecido no mercado, pelo que é difícil que as crianças e os jovens tenham, também elas, esse tipo de preocupação.
O problema do "fast-food" é que possui um elevado número de calorias e não sacia o estômago. E o mercado está repleto deste tipo de oferta. Agora até se chama água a bebidas que são tudo menos o que ela deve ser: inodora, insípida, incolor e sem calorias. E a publicidade a este tipo de produtos é cada vez mais dirigida aos jovens, associando um certo estatuto social ao consumo de determinados produtos. Não é de admirar que os problemas de saúde que antes caracterizavam praticamente apenas os adultos atinjam cada vez mais os mais novos, como o colesterol e a diabetes tipo II.

A quem pode ser assacada a responsabilidade por esta falta de informação: aos pais, ao governo, ao sistema de mercado?

Considero que as escolas têm uma quota parte de responsabilidade nesta questão. Não consigo perceber como é que as escolas continuam a oferecer nos bufetes e nas máquinas de venda automática o tipo de produtos que os professores alertam na sala de aula que não devem ser consumidos. Isto é o maior contra-senso que pode haver.
Há quem considere que não se deva proibir a venda de determinados alimentos, mas antes informar os alunos e deixar a escolha ao seu critério. Isto é válido para algumas idades, mas não para outras. E se é válido para os alimentos, deveria ser igualmente válido para o álcool e para o tabaco. Não se pensa nisto como um problema de saúde pública. Há uma série de incoerências que são graves. E é tanto mais grave quando é a própria escola a pactuar muitas vezes com esta situação. Não são os pais que devemos educar, são os jovens, e nesse sentido a escola tem um papel fundamental.

A Escola deve insistir na formação e diversificar oferta

De que forma se podem alterar estes hábitos?

Através de mais informação e de maior pragmatismo. Apesar de os meios de comunicação social terem um papel igualmente importante nesta tarefa, cabe sem dúvida à escola assumir-se como o principal veículo de divulgação. E para isso ela não deve apenas limitar a venda de certos produtos e promover outros mais saudáveis, mas perceber porque razão os alunos não gostam de comer aquilo que lhes é oferecido, por exemplo, na cantina. A grande maioria está concessionada a empresas de restauração colectiva, que trabalham com nutricionistas, fazendo com que as ementas tenham equilíbrio nutricional. Mas têm o paladar e o aspecto que os alunos gostam? E fechar os bufetes à hora do almoço não adianta, porque eles vão comer no exterior da escola.

De uma forma geral, como é que se come na escola?

Um estudo da Deco de 2005 mostrava que as ementas tinham algum excesso de carne e de gorduras, utilizadas sobretudo na preparação dos alimentos, mas dava uma nota positiva global à oferta disponibilizada. Mas a fruta, por exemplo, é pouco variada, e se for sempre a mesma é difícil que os alunos tenham interesse em comê-la. Eu sei que as escolas têm um orçamento limitado, mas é preciso pensar numa oferta mais variada.

Haverá, então, uma certa monotonia alimentar...

Eu julgo que sim, tanto nos alimentos como na forma de os confeccionar. O que eu tenho constatado junto dos alunos - e isto não deriva apenas dos apelos alimentares exteriores à escola - é que eles normalmente não gostam da comida da cantina. Faz-se muito poucas vezes massa, por exemplo, que é um alimento que os jovens costumam apreciar, ou mesmo pizzas, que, apesar de serem conotadas com "fast-food", têm como base a massa de pão, que não tem gordura e pode proporcionar uma excelente forma de integrar um molho cheio de legumes.
E isto é válido também em casa. Os legumes não têm de estar dispostos inteiros no prato, como os pais muitas vezes entendem que eles devem estar. Há muitas maneiras de se cozinhar a mesma coisa. Uma coisa é certa: a oferta alimentar nas cantinas das escolas tem de ser revista.

Não considera que a formação adquire, nesse contexto, um papel fundamental?

Definitivamente. E posso citar o exemplo do meu próprio curso de nutricionismo, que continua a não ter uma cadeira de gastronomia. Como é que se pode ensinar às pessoas a confeccionar comida atraente sem dar-lhes noções de gastronomia? Muitos nutricionistas formados não devem sequer saber cozinhar. É muito fácil calcular o valor nutricional que deve estar presente numa refeição, mas falta saber combinar de forma interessante esse conhecimento, que é aquilo que falta nas cantinas.
O Jamie Oliver, um cozinheiro britânico muito conhecido, prometeu que havia de pôr as crianças do seu país a comer bem e tem actualmente um ascendente muito grande sobre a cozinha das escolas inglesas. E realmente ele tem uma cozinha excelente, fácil de fazer e apelativa. Muitas das coisas que ele prepara não serão adaptáveis ao nosso contexto, mas o exemplo é.

O Ministério da Educação publicou recentemente um referencial para a oferta alimentar nas escolas que, apesar de reunir um conjunto de recomendações úteis, não é vinculativo. Não considera que se poderia ir um pouco mais longe e apostar na criação de um organismo que, entre outras funções, regulamentasse a formação e a oferta alimentar nas escolas?

Sim, concordo. Talvez através da criação de equipas multidisciplinares que pudessem construir esses referenciais de uma forma mais alargada e não limitados a meras sugestões técnicas, nomeadamente tirando partido das especificidades regionais e sabendo junto dos alunos o tipo de oferta que teria mais receptividade. Porque, afinal, são eles os consumidores, e a alimentação não pode ser encarada como uma imposição. A alimentação relaciona-se com o todo, com a componente física, psíquica e social. Não se come apenas para encher o estômago. E a escola tem de garantir aos alunos não só uma boa nutrição como o prazer de comer. Porque isso até pode, inclusivamente, ser um factor que ajude a garantir a permanência na escola.

Acha que as escolas e os encarregados de educação estão alertados para esta questão?

Não posso responder com uma certeza absoluta porque a minha experiência limita-se aos pedidos que me vão fazendo para participar em encontros e em acções de formação, quer por parte de escolas quer por parte de associações de pais. No entanto, o facto de ultimamente ter mais solicitações do que era habitual leva-me a crer que existe, em geral, uma maior preocupação sobre esta questão.

De que forma, além da própria ementa, se pode consciencializar os alunos para a importância da alimentação?

Em primeiro lugar a nível curricular. E isso é possível fazer-se de forma transversal em disciplinas como o Português, a Matemática, a Educação Musical, etc. Depois, a nível extracurricular existem inúmeras actividades que podem ser desenvolvidas, tais como concursos de receitas, de gastronomia, pondo os alunos a cozinhar, a pesquisar, etc. É só uma questão de esforço e de imaginação.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

Paula Veloso

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Paula Veloso

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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