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Cidadania solidária e produção de lugares comuns
Há tempos ouvi uma entrevista do músico português Bernardo Sassetti que, a propósito de um concerto com outros dois músicos, Mário Laginha, e Pedro Burmester, argumentava em favor da importância do «quarto elemento», considerando que o maior interesse do espectáculo que apresentavam a público residia nesse elemento novo, inevitavelmente imprevisível, nascido do encontro «a três». É esta, claro, a aritmética do verdadeiro encontro humano, aquele que, suscitando solidariedade e aprendizagem recíproca, dá lugar a algo absolutamente único e insólito que, desse modo, passa a funcionar «como-um». Ligo, pois, a expressão «lugar comum» à força do extraordinário, do excepcional e do inesperado e não à ideia de vulgar ou de banal associada ao seu significado corrente. Os seres humanos identificam-se, isto é, constroem identidade, enquanto seres de relação o que, neste contexto de reflexão, é o mesmo que dizer seres capazes de criar comunidade. A ruptura subjectiva provocada pela experiência de acolhimento de uma alteridade absoluta que, em rigor, só pode vir da presença de outra pessoa, é vital no processo de construção de identidade. Porém, por si só, ela não é suficiente para romper com o egoísmo da vida.
Como tantas vezes acontece, o cuidado e a deferência em relação a outra pessoa, a escuta atenta da sua verdade, pode não passar de um mero estratagema ao serviço do processo de engorda de Egos que, assumindo-se apenas na condição de receptores, indisponíveis para a partilha, escolhem permanecer ensimesmados, arrogantemente cheios de si. Configurada pelos valores da informação e do conhecimento, a sociedade contemporânea favorece a emergência de um certo «vampirismo social», alimentado por «pequenos dráculas» ou mestres na arte de apropriação narcísica. Ora é na experiência de relação solidária, na zona de encontro intersubjectivo, que se dá o prodígio do tempo. Quando duas subjectividades entram, efectivamente, em diálogo, entre um mesmo e um outro surge um «terceiro» que, à partida, estava ausente. Esse terceiro é o lugar comum, a verdade nova, a diferença desejada, a alternativa. Nesta medida, o sentido de comunidade produzido na relação solidária precede, sustenta e transcende o universo simbólico legitimado por qualquer colectivo histórico.
O pressuposto que acaba de ser enunciado vale para todos os patamares de experiência relacional, a começar por aquele que se refere à esfera da decisão política onde tendem a abundar as verdades «acima do comum», produzidas por cérebros especialmente iluminados, profetas e descobridores solitários que se apresentam no espaço público com as mãos cheias de miraculosas soluções. Ao contrário do que possa parecer, não se pretende com isto desvalorizar a actividade dos «políticos» e, muito menos, o carácter político de todo o agir humano. Pelo contrário, importa lembrar hoje o sentido e o lugar da política, trazendo-a para o espaço da participação cidadã. Neste caso, para o espaço social da educação. Eleger a educação como uma das prioridades de desenvolvimento humano significa a sua inserção num horizonte de discussão e acção pública onde ela surge, obrigatoriamente, combinada com uma economia, uma história, uma cultura, uma geografia ? uma política. Conforme nota Daniel Innerarity (Cf. «A transformação da política», 2002), face à proliferação de processos de auto-organização e de fraccionamento social, esta é até uma das grandes exigências do nosso tempo. Retomando a crítica de Weber à mentalidade antipolítica mas sem deixar de recordar que a política não está ela própria desobrigada do «dever de aprender que a sociedade do conhecimento elevou à categoria de máximo imperativo categórico», o autor alerta para a importância de uma actividade política enquanto prática exigentemente reflexiva, incompatível, portanto, com as formas de pseudo-actividade cujas aceleração e firmeza resultam, precisamente, de não se ter qualquer ideia do que acontece.
É necessário construir pensamento complexo, estratégico e prospectivo, o que nos obriga a caminhar para lá das simplificações produzidas pelas ideologias tradicionais, abrindo a razão socio-política para a dinâmica de solidariedade própria da relação intersubjectiva. A arte de negociação com a incerteza e com a contingência, cultivada na relação humana, constitui um antídoto fundamental contra qualquer fanatismo ou totalitarismo. Nesse sentido, sublinho a necessidade de uma reflexão exigente em torno dos modelos de intervenção sócio-educativa de modo a conseguir perspectiva-los num quadro de acção política amplo e partilhado, obrigatoriamente alicerçado num sentido de comunidade marcado pelo signo da responsabilidade perante a alteridade humana enquanto condição de uma cidadania solidária.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

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