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A nova paisagem educativa: leituras em torno da habilitação profissional para a docência

A leitura da paisagem educativa encontra hoje sentido para mim a partir de um guião ancorado em várias abordagens. Procuro dessa forma construir percursos e clareiras de entendimento que me permitam ver as árvores e a floresta. Estas interpretações desenham perfis de uma nova ordenação dos processos e das relações sociais em educação que pode bem ser condensada na ideia de uma nova ordem educacional (1).
Aquelas abordagens-âncora procuram pensar, por exemplo, os factos que temos testemunhado com a Universidade Independente, quando se fala de conflitos na administração, de accionistas ou interesses angolanos numa instituição de ensino superior portuguesa e o Estado intervém para verificar se e que ilegalidades existem e como são salvaguardados os interesses dos estudantes; a perspectiva da governação pluriescolar (2) em educação sugere que se pode compreender estes acontecimentos perguntando a que níveis (supranacional, nacional, subnacional), através de que instituições de coordenação social (Estado, mercado, comunidade, agregado doméstico) são articuladas as actividades (fornecimento, financiamento, regulação, propriedade) de governação da educação.
Outras leituras em que procuro apoio sublinham a acção transnacional, os novos modelos educativos de ambição mundial e a agenda globalmente estruturada para a educação (3). Por exemplo, os estudos PISA, o Processo de Bolonha, a Semana de Acção Global Educação como um direito humano, de 23 a 29 de Abril deste ano, o Fórum Económico Mundial e o Fórum Social Mundial são formas de acção transnacional eloquentemente presentes na paisagem educativa com que o nosso mundo se nos dá a ver.
Recentemente fomos testemunhas de um elucidativo retalho do actual universo educativo: a definição do regime jurídico de habilitação profissional para a docência. Esta história inicia-se por cá nos idos de 'noventa', com uma retoma impetuosa visível em Março do ano passado. Foi apresentada, pela tutela para discussão pública, uma proposta inacreditável que, entre outras provisões, era omissa quanto à obrigatoriedade de um mencionado Curso Profissional de Ensino ser de nível superior e ministrado exclusivamente por instituições de ensino superior; esta questão ficaria eventualmente dependente de "contratualizações" entre o ministério e aquelas entidades. Mais de meio ano depois, o referido documento foi substituído por um outro que, mantendo várias das determinações do texto anterior, dele se afastava em questões essenciais, designadamente o facto de agora se consagrar a exigência de formação profissional inicial para a docência, de nível superior, em instituições de ensino superior e integrada em projectos de ensino específicos para a docência. Foi a partir desta proposta que, com a discussão pública e as negociações mais ou menos efectivas ou malogradas que fomos conhecendo, teve lugar a elaboração e aprovação do Decreto-lei nº 43/2007, de 22 de Fevereiro que aprova o regime jurídico da habilitação profissional para a docência na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário.
Suponho que, para muitos de nós, este significativo episódio passou sem grande notoriedade. No entanto, é minha convicção que ele elucida vertentes importantes da nossa actual paisagem educativa. É possível verificar que, visível já desde o final dos anos noventa, uma importante clivagem separa as visões na Europa, e em diversas partes do mundo, sobre a formação para a docência (o estatuto e a identidade profissionais dos professores). Esta questão integra-se em outra muito mais vasta que é o projecto político-cultural para a educação e as nossas sociedades. Mas, no que respeita àquela formação, são esclarecedoras as actas da Conferência, sobre Políticas de Formação de Professores na União Europeia e Qualidade da Aprendizagem ao Longo da Vida, realizada no quadro da Presidência Portuguesa da União Europeia em 2000; o seu relator-geral, Buchberger, dá conta das tensões entre os caminhos divergentes seguidos na Europa quanto à questão em debate; assim, as políticas de formação de professores dos Estados-membros exibiriam, ao longo dos anos noventa, traços que poderiam ser agregados em torno de três principais orientações: a via tradicional; uma opção próxima de um modelo institucional de Aprendizagem, e uma terceira abordagem focada num "profissionalismo novo e aberto" (4). Ora, a via que persegue a des-profissionalização, a trivialização e o barateamento da formação de professores − corporizada em certas medidas regressivas pioneiramente tomadas em Inglaterra, mas agora também na Holanda, Dinamarca, Suécia − é aquela que poderosas organizações, como a OCDE e o Banco Mundial parecem privilegiar, enquanto esperançosas divergências internas têm dificultado um franco alinhamento da UE com as mesmas opções. Nesse sentido pode ser interpretado o aparentemente bloqueado documento Princípios Comum Europeus para as Competências e Qualificações dos Professores, divulgado em 2005, que contém o que vejo como uma reveladora indefinição a este respeito. Parecem, por isso, despontar alguns indícios de que tais orientações para a formação inicial de professores começam a ser olhadas, mesmo no seio da UE, como alternativas a considerar; e isto apesar da evidente ruptura com o movimento de formação longa, especializada e de nível superior que construiu a profissão até ao momento, das reservas e dúvidas levantadas quanto àquelas opções e da ausência de avaliação e de evidências apresentadas de que a qualidade e a democratização da educação são, por essas vias, beneficiadas.
Se estudarmos o que têm sido as propostas e as orientações do BM e da OCDE na última década, aquelas que ainda hoje caracterizam alguns dos mais avançados e generosos países da Europa neste sector, os debates desenvolvidos na Conferência de que atrás se fala e as hesitações, tensões e ambiguidades da UE nesta questão, ficamos com a percepção de que estas divergências podem ser enunciadas em torno de projectos que hoje correm paralelos: um projecto democrático-profissionalizante e um projecto competitivo-tecnológico para a educação e os professores.
A minha sugestão é que este importante e interessante episódio, em dois actos documentais, da história da habilitação profissional para a docência está marcado por versões daqueles projectos para a formação de professores; essas visões inspiraram e foram veiculadas por comunidades interpretativas distintas nos actuais governo e ministério da educação de Portugal. A nova ordenação educacional de que falamos foi aqui bem vincada, com a acção transnacional de múltiplos protagonistas, a influência de algumas importantes tendências em confronto, em torno do que pode constituir-se como um modelo educativo de ambição hegemónica mundial, as pressões de imperativos associados à economia e política globais. Mas o olhar bi-direccional, agora a partir do terreno, das políticas e dos processos nacionais, permite reconhecer a contextualização local, obra de estruturas, actores, interesses e interpretações que aqui dão corpo àquela nova ordem educacional mundial.

Notas:

1) John Field (2000). Lifelong Learning and the new Educational Order. Stoke on Trent: Trentham Books; Christian Laval & Louis Weber (2002). Le Nouvel Ordre Éducatif Mondial. OMC, Banque Mondial, OCDE, Commission Européenne. Paris: Nouveaux Regards/Syllepse.
2) Roger Dale (2005). "A globalização e a reavaliação da governação educacional. Um caso de ectopia sociológica", in António Teodoro & Carlos Alberto Torres (orgs.), Educação Crítica e Utopia. Perspectivas para o Século XXI. Porto: Afrontamento, pp. 53-69.
3) Roger Dale (2001). "Globalização e educação: demonstrando a existência de uma «cultura educacional mundial comum» ou localizando uma «agenda globalmente estruturada para a educação»?", Educação, Sociedade & Culturas, nº 16, pp. 133-169.
4) Bártolo P.Campos (2000) (coord.). Teacher Education Policies in the European Union. Lisboa: Portuguese Presidency of the Council of the European Union/Ministry of Education/ European Network on Teacher Education Policies.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

Fátima Antunes
Univ. do Minho
Fátima Antunes
Univ. do Minho

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