Os ecrãs, a família e o quotidiano
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Com a multiplicação de ecrãs que se regista, em ritmo crescente, nos lares de um cada vez maior número de famílias, como reagir? Que impacto pode ter na formação dos mais (e menos) jovens essa acessibilidade a "janelas" que abrem para mundos-outros, seja através dos canais de televisão, dos sites da Internet, dos jogos em rede, dos telemóveis tornados cada vez mais "gadgets" multi-usos? Utilizei o verbo reagir, o que supõe que a situação desenhada constitui já um facto consumado. Mas pode haver uma acção "a montante": qual a "política família" para adquirir ou não os equipamentos, para ceder ou não à pressão multiforme e super-habilidosa das crianças ou adolescentes? Uma conclusão que a investigação científica sobre estas matérias aponta com alguma consistência diz-nos que os comportamentos dos mais pequenos são muito influenciados pelo estilo de vida e pelo exemplo dos maiores. Assim, não fará sentido desejar instituir algumas regras mínimas quanto ao consumo de televisão e, ao mesmo tempo, passar sub-repticiamente a mensagem de que essas regras são para os outros e não para mim próprio. Escrevia-se numa notícia do 'Público' , de 16 de Março passado, a propósito de um estudo que envolveu 599 crianças, dos quatro aos 12 anos, de escolas das regiões de Lisboa e Porto: "Pergunte a uma criança portuguesa da cidade o que ela mais gosta de fazer. A esmagadora maioria vai dizer que é ficar em casa, a ver novelas e filmes ou a ouvir música; os mais velhos escolhem cada vez mais o computador; nove em cada dez dirão que usam a Internet". Não ponho em questão os dados, mas concluir, como conluia o título do artigo, que "as crianças preferem ficar em casa", aí já se pode levantar dúvidas. É que tudo depende daquilo que se pode escolher e das acessibilidades das ofertas disponíveis. Se as alternativas fossem para além das habituais e expectáveis, será que a conclusão seria a mesma? Há uns bons dez anos atrás, eu próprio coloquei uma questão desse tipo (certamente num contexto que hoje começa a ser 'pré-histórico') a crianças em idade escolar. E a grande mensagem que transparecia nos anseios das crianças era ?sair de casa, para andar de bicicleta, praticar desporto, passear, fazer piqueniques?O problema é que a maioria não tinha condições para o fazer. E a questão reside em grande parte aqui: instituímos uma determinada forma de organizar o quotidiano e, desde que ele vá funcionando, já nem nos perguntamos se não haveria outros modos possíveis de viver. Encerramo-nos num pequeno universo, enquanto ele responde, e já nem nos damos conta de que há alternativas, porventura até mais interessantes e estimulantes. Só que ir por outro lado ? por exemplo, apostar menos na 'institucionalização' das crianças e mais em actividades diversas em que elas fossem mais 'livres' e autónomas ? implicaria, certamente, famílias e vida familiar menos atomizadas, mais responsabilização das associações e autarquias locais em espaços e ofertas planeados com o contributo dos mais pequenos. Uma acção comunitária e 'política' que soará quase a delírio bem-pensante, se confrontada com a realidade crua de muitos dos bairros periféricos das grandes cidades ou com o deserto de alternativas de tantos núcleos populacionais afastados dos grandes centros. E, no entanto, é preciso sonhar! É vital dar-se conta de que o mundo e a vida podem mudar e ser diferentes. E que a qualidade da vida vai para lá do nosso poder de consumir e, sobretudo, muito para lá das formas de tirania a que esse consumo (ou consumismo) tantas vezes dá origem.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Abril 2007
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Autoria:
Professor da Univ. do Minho.
Professor da Univ. do Minho.
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