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O que é faltar

Quando o vi ele estava sentado no chão, no pequeno jardim, frente à escola, do outro lado da rua, aos pés de uma grande árvore, completamente absorvido nos movimentos que fazia com um pequeno pau que acompanhava o serpentear de uma carreira de formigas.
Era o início do Outono e o jardim estava deserto àquela hora em que a maioria das pessoas já tinha passado para o trabalho e os outros ainda não tinham saído de casa. Os miúdos como ele, alunos da primeira classe, estavam todos dentro da escola de cujas janelas ele não podia ser visto encostado como estava ao tronco da árvore.
Ficou surpreendido, e até comprometido, quando me viu, pois não era suposto que eu passasse ali àquela hora, sobretudo porque o tinha deixado à porta da escola uma hora antes, com o habitual beijinho de despedida, um "porta-te bem" e o ritual aceno de despedida.
? Que estás aqui a fazer?
? Nada, estou a ver as formigas?
? Mas não estavas na escola?
? Eu não fui?
? Porquê?O que querias então fazer?
? Nada. Eu só queria ver uma coisa?
? O quê?
? Eu queria ver como era faltar?
? Como era faltar?!
? Sim, para ver o que se sente quando se falta?
? E quando souberes o que é faltar o que é que vais fazer?
? Se demorar pouco tempo ainda vou para a escola se demorar muito tempo vou para casa almoçar.
Está bem ? Disse-lhe adeus e fui embora.
Mas, como muitas mães e pais, fiz batota e fiquei de longe a ver. Passado algum tempo atravessou a rua e foi até à porta da escola.
Lembrei-me desta história quando lia um texto de Agustina Bessa-Luís sobre a violência que "invade o campo social quando se exerce a autoridade sobre a forma como ser feliz. As pessoas não querem ser felizes mas criadoras?".(1)
A felicidade aparecia prometida pela escola mas antes de mais estava a curiosidade criativa do que é estar do lado de lá, do lado daqueles que não vão à escola.
E quem os vê sem ser visto, quem está presente na espera necessária para construir a decisão, quem lhes dá a mão, se necessário, para atravessar a rua e os leva até à porta da escola, quando começa a haver muito mais coisas para ver que um carreiro de formigas?

1) Agustina Bessa-Luís, 2006, A Ronda da Noite, Lisboa, Guimarães Editores


  
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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