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Os últimos educadores da África selvagem

Os mais-velhos africanos que as guerras devastadoras, por último entre patrícios, expulsaram das aldeias do interior, onde durante séculos o povo produziu o essencial com o seu trabalho e sabedoria, olham a cidade que lhes deu abrigo e, sentindo-se nela como seres inúteis e dispensáveis, sem tempo nem espaço para refazerem a vida, "choram com os olhos secos".
Outrora, apesar de não ter passado de um vislumbre a breve imagem da grande cidade que captaram quando contratados em trânsito para as fazendas dos colonos, o contraste entre uma adivinhada vida fácil que as pessoas ali aparentavam e a dureza da que estava reservada ao povo no mato, levava-os, mais tarde, no regresso à aldeia, a anunciar que havia outros mundos: "A cidade é boa: não vem cuco que se não transforme em andua."
Era, sobretudo, um recado dirigido aos jovens, para infundir nos mais audazes a ideia de que nos grandes centros se adquiriam costumes e conhecimentos novos, dos quais o exemplo dos funantes e cantineiros brancos das redondezas não dava verdadeira representação, pois o modo como viviam não os diferençava muito do povo. E assim alguns jovens, entusiasmados, não raro ainda meninos livres da idade em que seriam fatalmente apanhados para o contrato ou a tropa, ousaram partir para as cidades onde, servindo como criados, esperavam deixar de ser cucos para se tornarem anduas.
Depois, vieram as outras guerras que já não eram por causa dos colonos e a cidade mudou, mostrando-se afinal medonha, como os missionários falavam de uma tal Babilónia. Os mais-velhos que a tinham visto de passagem e os que ali aportaram pela primeira vez tiveram então saudades da aldeia e julgaram seu dever alertar os meninos da família e da vizinhança que às vezes lhes pediam para contar histórias antigas - mas sonhando ter muito dinheiro para satisfazer desejos de coisas impensáveis nas aldeias dos antepassados. E os avós contaram histórias exemplares que já tinham ouvido dos seus avós, agora porém terminando com um aviso: as pessoas não se podiam igualar às formigas e o dinheiro era uma invenção dos patrões para dominar quem vivesse nas cidades, mas que, no mato, não daria de comer a quem não cultivasse a terra e defendesse os rios e as florestas, dos quais o povo recolhia o necessário para sustentar as famílias e manter a paz entre as aldeias vizinhas, com as quais trocava as "novidades" e os excedentes da produção.
"O dinheiro não tem parentesco" ? fixavam, lembrando que a sua procura dividia as pessoas e endurecia os corações.- "O salalé une-se à árvore e o filho de gente une-se a outro igual." Mas "o parentesco só fica bom quando se mistura com a amizade."
As crianças escutavam respeitosamente, respondendo, a brincar, como ouviam amiúde da boca do pai ou da mãe, ambos empenhados nas lutas do trabalho mal remunerado, do biscate ou dos negócios de rua, porfiando conseguir o mínimo necessário para manter viva a família ? responsabilidade em que elas também colaboravam, quando não frequentavam ou fugiam da escola: "É mesmo, avô. Dinheiro é como visita de ocasião: entra e sai logo." Mas viam que muitos patrícios ficavam ricos e gordos de um dia para o outro, exibindo belos fatos e gravatas quando saíam de potentes carros para entrar em luxuosos restaurantes, e concluíam para si próprias que os ensinamentos dos mais-velhos (a quem os professores da escola chamavam bibliotecas do mato), não ajudariam, quando na cidade, o cuco a transformar-se em andua...
Contudo, não se deixavam iludir os mais-velhos. Sabiam que, fora do musseque, os meninos assaltavam casas e pessoas e que as meninas adolescentes, a quem chamavam "catorzinhas", alugavam o corpo por algum dinheiro ou um vestido, não se importando de contrair doenças terríveis, como a tal "sida", de que os antigos só na cidade tinham ouvido falar.
Remetidos, por força da idade e sem poderem mudar a vida, à sua toca no bairro-formigueiro onde todos os activos se movimentavam, como salalé, acarretando o que conseguiam granjear, para continuarem a viver no dia seguinte, atormentava-os verificar que já não eram as pessoas que dominavam as coisas e os acontecimentos, mas eram estes que dominavam as pessoas, pautando-lhes as necessidades, os movimentos e as ideias. "Amanhã será melhor" ? contemporizavam os pais das crianças, ainda lembrados de terem aprendido que "quando o salalé subisse ao tecto, sossegado ficaria o coração."
Então os mais-velhos franziam os sobrolhos, resistindo à vontade de dizer que o amanhã podia ser muito tarde para resolver o grande dilema do presente: "Uma cobra enrolou-se no muringue e tu queres beber água: se lá pões os beiços, a cobra morde-te; se a matas, o muringue parte-se."
Com todas as dúvidas e longe dos espíritos protectores que ficaram vagueando no mato, só lhes restava, pois, "chorar comos olhos secos", já que "da fechadura do coração a chave era o seu dono."

Nota: Alguns dos provérbios citados, entre muitos reunidos por Óscar Ribas no seu livro "Misoso" ? 1979, ainda podem ser ouvidos na cidade de Luanda.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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