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Professores: fazer das tripas coração (I)

A qualificação da escola pública é uma necessidade vital para o país e para a sua afirmação como uma sociedade democrática. Se não formos capazes de encontrar novas soluções para o problema do insucesso visível e invisível que afecta um número significativo de alunos que frequentam as escolas portugueses, arriscámo-nos a contribuir para a fracturação política, social e cultural do país. Não é que essa fracturação hoje já não aconteça, só que, felizmente, continua a ser entendida, por um número significativo de pessoas, como um facto indesejável ou, pelo menos, como um facto incómodo. Posição esta que, contra ventos e marés, continua a alimentar quotidianamente acções e reflexões que visam promover as escolas públicas como espaços educativos de qualidade. Uma posição que, contudo, poderá vir a ser progressivamente abalada, caso a Escola Pública continue a ser objecto de uma responsabilização social excessiva, continue a afirmar-se como uma Escola Estatal e continue, também, sem encontrar respostas curriculares, pedagógicas e didácticas distintas daquelas que têm vindo a ser accionadas pela larga maioria dos seus professores.
Se não se enfrentar, de modo diverso e através de estratégias distintas, cada um dos problemas enunciados, escancaram-se as portas ao desenvolvimento e consolidação de uma rede crescente de escolas privadas, o que, em abstracto, não seria um facto necessariamente negativo, se não significasse a legitimação de um projecto político de segregação educativa em nome da liberdade de escolha e, consequentemente, da aceitação definitiva do desinvestimento, por parte do Estado, na qualificação da Escola Pública. Teríamos, assim, com ou sem cheques-ensino, escolas onde as crianças e os jovens da dita classe média conviveriam e seriam educados entre si, enquanto, ao lado, sobreviveriam as crianças e os jovens provenientes de meios sociais desfavorecidos em microcosmos educativos distintos e com um peso diferenciado quanto ao seu valor na relação com o mercado de trabalho.
O Brasil está aí para nos mostrar como é que a degradação da sua escola pública esteve na origem, nos últimos vinte e cinco anos, do crescimento rápido e exponencial de um sistema de ensino privado cuja dinâmica, pelo que ela pressupõe e pelo impacto da mesma, não pode deixar de constituir um problema político e social cada vez mais difícil de enfrentar. Para o Brasil, é essa escola pública sem qualidade e sem condições, onde os professores são, de facto, tão mal remunerados quanto mal amados, que nunca poderá ser um dos esteios da mudança educativa de que o país tanto necessita. As escolas privadas não são, por seu turno, a tão incensada alternativa que os seus defensores, por cá, tanto apregoam. Se é verdade que lá, como aqui, os resultados escolares dos seus alunos tendem a ser melhores, também é verdade que, lá como aqui, isso tem mais a ver com a excelência das condições de vida desses alunos do que propriamente com a excelência dos projectos de acção educativa que aí se animam. O que se verifica, e que a nós nos interessa como motivo de reflexão, é que as escolas públicas brasileiras tendem a afirmar-se mais como espaços de intervenção social (1) do que como espaços de intervenção cultural. Enquanto isso, algumas das escolas privadas, as melhores escolas no quadro de um sistema onde, afinal, se acaba por vender muito gato por lebre, tendem a afirmar-se como contextos onde aquela intervenção cultural se subordina, sobretudo, a propósitos de carácter instrumental. Daí que seja possível compreender-se como, neste âmbito, o mercado da educação se afirma como uma área de negócios e os professores, por isso, são reduzidos à categoria de prestadores de serviços. Os exemplos abundam e são chocantes. Num caso, afirma-se, por exemplo, a figura dos professores-tutores cuja função é equivalente à dos nossos professores-
-explicadores, com a diferença de que estes são uma opção que os pais procuram fora da escola, enquanto os primeiros são uma opção que a escola estimula e disponibiliza, por um determinado preço, aos encarregados de educação. Se as escolas privadas são espaços de excelência académica pergunta-se, então, porque é que é necessário propor medidas de carácter compensatório permanentes que permitam que os estudantes respondam de forma adequada às exigências de que são alvo? Não é suficiente o trabalho de suposta qualidade pedagógica que ocorre quotidianamente nas salas de aula? No segundo caso, aquele onde a noção dos professores como prestadores de serviços assume um significado iniludível, assiste-se, hoje, a um facto inominável, o de haver escolas onde existem câmaras de vigilância ligadas directamente às residências das crianças, de forma a que as respectivas famílias possam controlar e decidir, on-line, o trabalho que desejam que os professores realizem com os seus filhos.
O que é que tudo isto tem a ver com as escolas e os professores portugueses?
No nosso próximo artigo tentaremos demonstrar como a serpente já se vislumbra no seio do ovo, de forma a discutir-se a margem de manobra dos professores e as suas eventuais responsabilidades, bem como de outros actores e instâncias, no processo de desqualificação da Escola Pública portuguesa.

1) Espaços onde as crianças têm a única refeição decente do dia e onde, mais do que as aprendizagens, são as quantas vezes mal sucedidas acções de profilaxia social que acabam por justificar a existência dessas mesmas escolas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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