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A exclusão dos directores de turma
O Estatuto da Carreira Docente dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, recentemente aprovado pelo Governo (Decreto-lei nº 15/2007 de 19 de Janeiro), foi antecedido por uma proposta ministerial inicial que imediatamente extravasou o âmbito do sistema educativo e que teve grande impacto na opinião pública ? proposta a partir da qual surgiram e se confrontaram análises, explicações, contra-propostas e reacções amplas, heterogéneas e contraditórias da parte de distintos sectores sociais, sindicais, político-partidários, profissionais e da própria administração do sistema educativo, as quais oscilaram, consoante os casos, os actores e as circunstâncias, entre meros desabafos emotivos, de auto-comiseração ou opiniões passageiras de vitimação desculpabilizante, ou, mais frequentemente, entre a explicitação de esforços de objectividade analítica, compromissos com a melhoria educacional, denúncia informada e ponderação realista de alternativas para a profissão, passando ainda, mais do que seria previsível, por discursos acusatórios (muitos deles completamente alheios às realidades educacionais) que acentuaram a culpabilização e responsabilização (quase exclusiva) dos professores (e, em grande parte, também das ciências da educação) pela situação dos ensinos básico e secundário e pela falta de políticas duradouras e adequadas aos (supostos) desafios educativos contemporâneos.
Sobretudo no que diz respeito a estas últimas reacções e opiniões, as repercussões foram muitas vezes ideologicamente ampliadas, numa certa comunicação social, por opinion makers de quadrantes vários, certamente com ardilosas nuances e subtilezas, mas tendencialmente ao serviço da corrente dominante, não sendo, por isso, despiciendo que a sua capacidade persuasiva explique (pelo menos, em parte) muitas das pressões que pesaram sobre a acção dos sindicatos de professores na negociação com o Ministério da Educação, embora, perante constrangimentos vários e ventos desfavoráveis, estes tenham mostrado uma boa capacidade de mobilização, de resistência e de argumentação (que alguns já não esperavam), e sem as quais, aliás, o resultado final das negociações teria sido muito diferente e muito mais nefasto para o futuro da profissão docente.
No momento actual, atenuados os arremessos acusatórios, expiados alguns sentimentos de culpa, retomada a relativa e frágil estabilização do sistema e parecendo, também por isso, existir já um amplo conformismo por parte de muitos professores, as expectativas dirigem-se agora para a regulamentação do novo estatuto da carreira. Entretanto, no rescaldo de todo este processo, as realidades e quotidianos da educação e do ensino não se alteraram substantivamente muito embora, muitos dos seus principais actores, tenham começado já a fazer (ou refazer) estratégias e a ponderar hipóteses e possibilidades de futuro: trata-se afinal de sobreviver a uma nova política para a docência em que é assumida a vontade de introduzir uma diferenciação profissional explícita, congruente com uma (ainda mal disfarçada) forma de incentivar a individualização de responsabilidades e percursos, apostada na produção e mensuração de resultados, para a qual se conta já com o accionamento de uma maior vigilância gestionária endógena, eventualmente apoiada por alguns sectores sociais e, sobretudo, por muitas famílias da (nova) classe média.
Na prática, na base de um posicionamento em determinados escalões de carreira (a que nem sempre se chegou por mérito efectivo), uma nova e arbitrária divisão do trabalho docente instala-se desprezando completamente as competências concretas de muitos professores, os seus compromissos, envolvimentos e dedicações reais, a qualidade dos desempenhos e dos cargos assumidos anteriormente, as formações interiorizadas e recontextualizadas no quotidiano, os trajectos e projectos em construção? Como se estar num determinado escalão da carreira docente fosse, doravante, garantia suficiente de qualidade nas práticas e nas atitudes profissionais! Como sabemos, há, em todos os patamares da carreira, professores competentes e não competentes, dedicados ou desinteressados, lúcidos ou alienados, motivados ou desmotivados, profissionais ou meros executores. Por isso, é estranho que, sem um período de transição suficiente para concretizar adequadamente estas mudanças, algumas atribuições (que até vinham a ser, em muitos casos, muito bem desempenhadas por professores com menos tempo de serviço e até com mais formação do que os futuros titulares) sejam agora exclusivas desses professores titulares.
Mas um dos paradoxos maiores é que das funções de coordenação e supervisão "reservadas à categoria superior de professor titular" estão ausentes as funções de coordenação de turma (a direcção de turma), quando se sabe que esta é, e continuará a ser, com este ou com outro nome, uma das funções mais centrais e mais estruturantes da escola como organização educativa complexa, não apenas para "promover a cooperação entre professores" como, também, para atender a várias dimensões pedagógicas, motivacionais e relacionais que envolvem os alunos, a comunidade e as famílias e, dentro da fundamentação incluída genericamente no preâmbulo do novo Estatuto da Carreira Docente (ECD), certamente também indispensáveis para "promover o sucesso dos alunos, prevenir o abandono escolar precoce e melhorar a qualidade das aprendizagens". Este paradoxo, que se traduz claramente na exclusão das directoras e dos directores de turma de um processo de diferenciação e de suposta valorização de determinadas funções essenciais (há muito defendido em intervenções e textos especializados e, mesmo, em trabalhos empírica e teoricamente sustentados por professores do ensino básico e secundário que realizam investigação sobre a realidade educacional), pode deixar de ser um paradoxo quando se percebe que, afinal, o que está em causa não é tanto o que se apregoa para legitimar as mudanças no ECD mas, sobretudo, uma outra forma de desinvestir nas políticas públicas de educação dentro do espírito do tempo que a todos (desigualmente) constrange, embora nem a todos revolte. Será caso para perguntar, extrapolando e recontextualizando alguma coisa de Gilles Deleuze (citado por Slavoj Zizek em A Subjectividade por Vir), que este processo não foi suficientemente traumático porque não nos incitou ou não nos levou a pensar ou a pôr em causa as nossas maneiras habituais de pensar?

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho
Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho

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