Para uma crítica da interculturalidade enquanto lugar-comum
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Uma das questões mais preocupantes em educação ou na intervenção social é a da banalização dos conceitos que, contrariamente a uma persistente crença que procura desvalorizar a importância das conceptualizações, condiciona fortemente as práticas tornando-as redutoras e rotineiras. Um desses conceitos é precisamente o de interculturalidade. Vejamos sucintamente, através de alguns exemplos, como e porquê. A interculturalidade, se é em si mesma um valor e até um imperativo ético, constitui actualmente também um chavão que permite, com frequência, sob o manto do seu impacto retórico, ocultar fragilidades e contradições. Antes de tudo quando, sem mais, é oposta à etnocentricidade, criando-se uma dicotomia em que a primeira é assumida como o pólo do bem e a segunda é olhada enquanto o esteio do mal? Ora, na realidade, a abertura só é possível quando assumimos os nossos próprios pontos de vista e nos confrontamos com os dos outros, sem prejuízo de podermos continuar a considerar os nossos como os mais valiosos. Mais ainda, importa que nos interroguemos sobre o carácter ocidentalocêntrico da própria noção de interculturalidade: se a vivência que ela procura introduzir se pode enraizar no culto da tolerância que uma cultura dos direitos humanos introduziu, sabemos igualmente que ela é olhada com extrema desconfiança por outras perspectivas culturais que vêem nela uma nova estratégia de intervenção hegemónica do chamado mundo ocidental. Assim, a interculturalidade seria nem mais nem menos do que a expressão de um etnocentrismo consumado. Por outro lado, a interculturalidade tende a exacerbar as diferenças sob o pretexto do respeito pelas mesmas. Corre-se assim o risco de se cortarem os fortes laços de humanidade que aproximam as múltiplas representações que se fazem do mundo e da vida, constituindo-os. A homenagem da diferença, ao afastar o que afinal está próximo, redunda nestas circunstâncias num ritual de discriminação e exclusão. As confissões religiosas começaram a aprender finalmente os caminhos da participação e da partilha; as políticas nacionais e internacionais, para estimularem uma conflitualidade economicamente proveitosa, escancaram e plantam as diferenças que tornam as opiniões públicas incompreensíveis umas perante as outras. A interculturalidade emerge então como a plataforma ética de uma aceitação e de um lamento cínicos. Mas a interculturalidade esbarra de igual modo num outro preconceito: o da sua redução arbitrária à inter-etnicidade, escamoteando-se, entre outras, as culturas rurais, urbanas e suburbanas, as culturas geracionais, as culturas regionais, etc. Desta maneira, a tolerância fica com o seu horizonte arbitrariamente amputado e circunscrito aos circuitos da civilização. Ou seja, a tolerância e inerente solidariedade intercultural oficialmente propalada legitima espaços imensos de uma exclusão inconscientemente assumida. As consequências deste fenómeno são imensas pois levam ao culto de uma tolerância que afinal é fácil relativamente àquilo que é distante e que portanto, enquanto tal, não ameaça, deixando, entretanto, as pessoas impreparadas para lidar com as conflitualidades que as percorrem na família, na comunidade, no emprego, na escola, no exercício quotidiano da cidadania ou quando o longínquo, por via nomeadamente dos media ou das migrações, passa a estar ao pé da porta. As questões surgem ainda quando, ao defender-se acriticamente a interculturalidade, se escamoteia ? talvez por ser incómodo - aquele que parece ser um medo atávico pela diferença. Medo expresso, conforme o mostram vários estudos antropológicos, na criação das figuras diabólicas que exorcizam o mal, na simbólica dos limites que faz erguer nas fronteiras das povoações cruzeiros e outros marcos com que se pretende deter o desconhecido, etc., etc. É, de facto, demagógico queremos fazer acreditar que quase será possível olharmos para o diferente com indiferença? No fundo, o grande problema aqui é que nos tornamos, algo insensivelmente, censores das diferenças ilegítimas, ou seja, reivindicamos o direito de reconhecer as que podem ser toleradas, afinal, porque não são assim tão diferentes. Passamos a ter mais força para colocar fora dos limites éticos as que continuam a assustar-nos: noutras religiões, noutras paragens, do outro lado da rua! Como pano de fundo de tudo isto aparece a crítica mais ou menos óbvia ao relativismo. Como se este não fosse nem mais nem menos do que o reverso do dogmatismo?Os riscos do relativismo só o são para aqueles que detêm uma verdade: nas morais da convicção, nas ideologias políticas ou nas ciências positivistas. É que ter convicções não é o mesmo que deter verdades. Aquelas implicam diálogo, estas, a imposição das certezas que delas derivam. Consideremos, pois, a interculturalidade como uma convicção e nunca como uma verdade. Precisamente em nome da sua coerência educativa e social.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Março 2007
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Autoria:
Fac. de Letras, Univ. do Porto
Fac. de Letras, Univ. do Porto
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