Página  >  Edições  >  N.º 165  >  Escreve-se, às vezes, muito longe de estar perto

Escreve-se, às vezes, muito longe de estar perto

Memórias da minha morte

O meu primeiro texto publicado em letra de forma saiu no jornal "O Tempo", um quinzenário que se editava em Penafiel. Eu teria uns 15 anos e estava longe de sonhar que oito anos mais tarde seria jornalista profissional. "O Tempo" era impresso na Tipografia Minerva, do Largo da Ajuda, propriedade do próprio director do jornal, o senhor Tomás Ferreira.
Mais tarde, voltaria a escrever no jornal "O Tempo", então semanário de Lisboa, tido como de direita, dirigido por Nuno Rocha. À data, andava a tentar promover nos jornais, nas rádios e na televisão, uma Semana Internacional de Teatro Universitário (SITU) que se organizava em Coimbra. Estava longe de pensar que Nuno Rocha, sabendo-me jornalista, me daria uma página com a condição de ser eu a escrevê-la.
Embora jornalista, ainda me sentia militante activo da geração estudantil coimbrã que fundou as semanas internacionais de teatro universitário, no Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), e ainda colaborava com o TEUC nessa tarefa (que então estava longe de equacionar como sendo incompatível com esta profissão) de promover uma iniciativa cultural como eram as SITU.
Muito cioso do meu auto-proclamado rótulo político de esquerda, que mantenho, estava longe de acreditar que nas páginas do convertido "Diabo" (o jornal onde colaboraram, antes do 25 de Abril, intelectuais como Álvaro Cunhal ou José Régio), Vera Lagoa, um dos mais duros pilares da Direita, alguma vez assinasse, como assinou, um texto, de matriz quase esquerdista, pela morte de Louis Aragon.
Estamos sempre longe de imaginar que alguém que rotulamos de direita possa, um dia, surpreender-nos com um gesto, um texto, uma atitude que só consideraríamos possível em alguém que reconhecêssemos como de esquerda. Sendo que o inverso também é verdadeiro ? às vezes encontramos muita intolerância entre gente que sempre ergueu bandeiras contrárias.
Cinco meses antes da data do primeiro aniversário do sangrento golpe militar de Pinochet, o director do jornal "O Telégrafo", diário da cidade açoriana da Horta, estava muito longe de admitir que a 11 de Setembro de 1974 iria ceder o espaço do editorial, na primeira das quatro páginas da sua edição normal, para um inflamado artigo contra a ditadura chilena, que eu assinaria como jornalista que ainda não era.
Todos nós, apesar da palavra ser a matéria prima da mentira, escrevemo-nos ao escrever e, às vezes, muito longe de estar perto.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo