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"A ciência não é baseada em verdades"

Margarida da Gama Carvalho, investigadora e colaboradora de A Página:

A ciência situa-se numa linha cada vez mais ténue entre o progresso e as implicações éticas. Mas quem determina, afinal, onde começa e acaba essa fronteira? E que papel deve ter a comunidade científica nesse debate? Estas foram algumas das questões que colocámos nesta entrevista à investigadora Margarida da Gama Carvalho, com quem falámos ainda sobre a investigação científica desenvolvida em Portugal e sobre os constrangimentos que afectam a actividade dos cientistas portugueses.
Licenciada em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Margarida da Gama Carvalho doutorou-se em Ciências Biomédicas, especialidade de Biologia Molecular e Celular, pela Faculdade de Medicina de Lisboa (FML), onde obteve aprovação com louvor e distinção e foi classificada com uma nota final de 20 valores. Actualmente é Professora Auxiliar de Biologia Molecular e da Célula no Instituto de Biologia Molecular da FML e investigadora da Unidade de Biologia Molecular do Instituto de Medicina Molecular.
A este currículo acrescenta a docência em diversos cursos de pós-graduação e a orientação de estágios científicos e de jurado. Mantém igualmente uma colaboração regular com o Programa Ciência Viva do Ministério da Ciência e Tecnologia e com o jornal A Página da Educação na rubrica "Da Ciência e da Vida".

Tendo em conta a sua experiência enquanto investigadora, de que forma caracterizaria o nível de produção científica em Portugal?

Portugal é um país que não aposta na produção científica e onde a investigação tem, de certa forma, um estatuto supérfluo. A escassez de recursos económicos pode explicar, em parte, o facto desta área não ser encarada como um investimento prioritário. Porém, na minha opinião, isso é contraproducente porque é preciso assumir que a aposta no desenvolvimento do país passa necessariamente pela investigação científica.
Depois, temos poucos recursos humanos e materiais para trabalhar. Apesar de tudo, com estas limitações conseguimos fazer um trabalho por vezes surpreendente.

O trabalho desenvolvido no país tem reconhecimento a nível internacional?

Existem diversos grupos de investigação que desenvolvem um trabalho de qualidade comparável a grupos internacionais. Uma forma comum de avaliar a qualidade desse trabalho é a sua publicação em revistas científicas da especialidade, como a Science ou a Nature, habitualmente mais cotadas no panorama internacional.
Se formos a avaliar a forma como os nossos trabalhos se distribuem nessas publicações internacionais constataremos que os trabalhos científicos desenvolvidos em Portugal não têm a mesma regularidade por comparação a outros países. No entanto, há bastantes investigadores que publicam ali os seus trabalhos e que marcam uma contribuição de qualidade a nível internacional.

Tendo em conta o contexto nacional, que áreas de investigação científica deveriam ser privilegiadas?

Penso que a investigação não deve, à partida, ser orientada, porque se baseia muitas vezes em função de critérios de aplicação que, no caso da ciência, não é possível prever antecipadamente que venham a produzir frutos. Considerando que do ponto de vista das infra-estruturas e dos equipamentos as diversas áreas científicas partilham necessidades equivalentes e básicas, penso que o mais importante seria aproveitar os recursos humanos existentes.
Por outro lado, é de toda a conveniência que o trabalho feito cubra áreas de interesse nacional. Um país com uma ligação tão estreita com o mar, por exemplo, deveria apostar mais na criação de grupos de trabalho que desenvolvam conhecimento neste campo. Nas áreas mais distantes das aplicações práticas e a nível da investigação fundamental eu inclino-me a afirmar que não deve existir muito dirigismo.

O poder político anuncia regularmente programas de incentivo e de financiamento à investigação científica. Até que ponto este investimento é de facto relevante para o avanço da ciência no país?

Na última década houve um progresso substancial no investimento realizado na área científica, em particular nos anos 90, resultando num maior dinamismo e no aumento do número de grupos de investigação. Mas esses investimentos não têm uma visão de longo prazo e acabam por não colmatar as faltas estruturais existentes.

Um dos problemas que mais afecta os investigadores portugueses é o facto de não terem uma carreira própria e estável. Confirma esta ideia?

Sim, em Portugal praticamente não existe uma carreira de investigação científica, que em grande parte é desenvolvida à custa de bolseiros, pessoas extremamente qualificadas mas com um estatuto legal precário. Até há bem pouco tempo, por exemplo, eram equiparados a indigentes no Sistema Nacional de Saúde, e continuam a não poder aceder a um crédito à habitação por não possuírem um vínculo laboral. No fundo são equiparados a estudantes, quando muitos deles são já doutorados.
Uma parte significativa da investigação científica é também desenvolvida por docentes universitários, que acumulam as duas actividades e sofrem de uma sobrecarga horária muito grande por comparação aos seus colegas estrangeiros. Os investigadores com um vínculo profissional estabelecido são raros.
Curiosamente, avança-se por vezes com o argumento, defendido inclusivamente por alguns investigadores, de que a estabilidade é um entrave à criatividade. É um argumento que merece ser pensado e discutido, mas passar fome é também um entrave à criatividade. É preciso, pois, encontrar um equilíbrio que resolva o problema.

Outra das dificuldades habitualmente apontadas pela comunidade científica prende-se com o financiamento. Em que medida condiciona a actividade dos investigadores?

Sobretudo pela falta de regularidade nos apoios. A investigação científica é na sua maioria financiada através de verbas atribuídas a projectos, para os quais se abrem concursos e que podem ou não ser aprovados. Quando estes concursos não têm regularidade ou são lançados em datas completamente arbitrárias, o investigador recebe um financiamento para três anos e não sabe quando volta a receber. Desta forma, torna-se muito difícil gerir o trabalho.
Depois, os montantes que se recebem em Portugal por comparação a outros países são irrisórios. Se um projecto de investigação para três anos em Portugal recebe 150 mil euros, o equivalente no estrangeiro receberia um milhão de euros.

A ciência, a escola e as implicações éticas

Porque razão não existe uma maior procura pelas áreas científicas?

Não é uma pergunta fácil, antes de mais porque esse não é um problema exclusivamente nacional. Outros países no mundo queixam-se também da falta de interesse dos jovens pelas carreiras científicas. É um problema que provavelmente estará relacionado com a forma como a nossa sociedade está estruturada e com a tendência imediatista de obter bens materiais e resultados, tanto no trabalho como na vida.

Não passará também pela forma como a escola desperta para a ciência?

Esse poderá ser um factor a ter em conta, mas penso que não é um motivo suficientemente forte. Os jovens não absorvem apenas aquilo que lhes é apresentado na escola mas também aquilo que é o seu ambiente social e familiar.
Numa época em que estamos cada vez mais dependentes da tecnologia assistimos a um gradual afastamento e incompreensão das pessoas em relação à ciência, à cultura e ao processo científico que, na minha opinião, pode ser perigoso. Uma das origens deste fenómeno pode estar relacionado com o facto de a ciência não estar a resolver os problemas da sociedade e de esta estar a tornar-se extremamente economicista, agressiva e promotora da degradação da qualidade de vida das pessoas, o que elas associam a uma era muito tecnológica e, por sua vez, à ciência.

Uma das questões que mais suscita preocupação por parte da escola é a actualização dos saberes, em particular na área das ciências. Até que ponto é possível manter essa actualização permanente?

A actualização dos saberes é fundamental e penso que os professores que trabalham no ensino das áreas científicas deveriam ter apoio nesse sentido e empenhar-se nessa tarefa.
Mas o problema do ensino das ciências começará mais atrás e relaciona-se com a forma como a ciência é entendida. O ensino das ciências baseia-se muito na transmissão de um corpo de conhecimentos adquiridos e isso é extremamente pernicioso. Os conhecimentos adquiridos, por definição em ciência, perdem validade num curto espaço de tempo, porque se há grandes teorias e descobertas fundamentais que constituem a base do nosso conhecimento e que não se irão alterar, outros conceitos evoluem a grande velocidade.
Nessa medida parece-me que o mais importante seria conseguir transmitir aos alunos o processo de construção do conhecimento, a compreensão do método científico, explicar-lhes que se trata de um processo dinâmico e fazê-los compreender os grandes conceitos básicos e a forma como eles se integram. De contrário, os alunos saem da escola a acreditar em verdades, quando a ciência não é baseada em verdades mas sim em modelos que a explicam e que são úteis.
Porém, os professores também são formados nesse sentido. E estes ensinam alunos que, por sua vez, se tornam professores. Chegados à universidade seria de esperar que fosse diferente, mas não é. A maior parte dos professores que ensina ciências praticamente não tem contacto com a prática científica e se calhar isso é um dos factores que acaba por desmotivar os alunos.

Há pouco dizia que uma das causas para o afastamento da ciência prende-se com o facto de esta não estar a resolver os problemas da sociedade. Porque razão pensa que a um tão grande avanço da ciência não corresponde um equivalente desenvolvimento humano?

Pois? uma coisa é o que sabemos e outra é o que aplicamos na prática! E aquilo que é feito na prática, na minha opinião, é limitado e determinado sobretudo por critérios de ordem económica. A necessidade evidente de encontrar fontes de energia alternativas ao petróleo, por exemplo, e de criar veículos não poluentes, vai contra os interesses de uma indústria estabelecida. As engrenagens do sistema estão montadas dessa forma. Os excedentes da produção agrícola dos países desenvolvidos são, como toda a gente sabe, deitados ao lixo apesar da escassez de alimentos em várias zonas do globo. E isto não tem a ver com a ciência.

A quem serve, então, a ciência? Na medida do necessário, claro?

Para responder a essa questão eu colocaria uma pergunta: a quem serve a arte ou a literatura? Eu encaro a ciência como mais uma forma de cultura e de satisfazer a necessidade que o ser humano tem de compreender o mundo em que se encontra e de se compreender a si próprio. E é aí que começa o processo. Por oposição à arte e à literatura, a ciência não só traz satisfação intelectual e formas de estar no mundo, mas também tem as suas aplicações tecnológicas e é aí que adquire um valor adicional.
Mas conceptualmente eu tenderia a diferenciar os dois processos. Quer se queira quer não, as aplicações científicas e técnicas acabam por servir toda a gente, mesmo nos países mais pobres, onde se utilizam tecnologia que em outros tempos seriam impensáveis. Mas isto está sobretudo relacionado com a gestão das sociedades humanas, que é uma questão complexa para a qual ainda ninguém ainda encontrou uma resposta.

Que papel devem ter os cientistas nessa tarefa?

Têm um papel muito importante, apesar de difícil. Para isso é fundamental que os cientistas saiam dos seus laboratórios e comecem a dirigir-se de forma mais activa à população, divulgando uma forma de cultura que tem um valor social muito grande mas que habitualmente se encerra entre quatro paredes.
E não estou a referir-me apenas ao tipo de conhecimento que desenvolvem, mas a questões de carácter prático que, se fossem alargadas à sociedade, trariam grandes benefícios. Não é possível, por exemplo, fazer um trabalho de investigação científica sem organização, rigor, método, exigência, grande capacidade de controlo e de auto-crítica. Ora estas são atitudes que se adquirem no trabalho mas que têm um grande valor social. E a maioria das pessoas não adquire estas ferramentas para lidar com a sua própria vida.
Seria importante transmitir esta forma de estar à sociedade, ajudando as pessoas a alargar o seu espírito crítico e a questionar aquilo que é muitas vezes dado como adquirido.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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