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Deificação e saber
Ocorre-me no tumulto das memórias uma manhã em que, percorrendo a margem do Caima com amigos dividindo os prazeres da liberdade, o engenho e a arte se revelaram nas formas de moinhos de água, das suas engrenagens seculares e das pedras trabalhadas com o peso de saberes recolhidos na bruma dos legados. E à paisagem soberba aldeões acrescentavam pelas hortas alegria, saudando-nos sem pudor, vergados a tratar da terra para que pudessem colher alimento como se de jardins se tratasse, com
amor - por que não dizê-lo? - e com desvelo. Talvez fosse gratidão que espelhavam os rostos, ou então seriam os reflexos das águas mansas do rio que lhes embelezavam o perfil na alvorada em que a brisa sobre nós, estrangeiros na própria casa, lançava ecos de felicidade. À distância da recordação, vejo agora que na modéstia das mesas para que convidam, no singular sabor do que semeiam, na energia das mãos, nas palavras que o tempo vai poupando ao ritmo lento e malicioso, caprichoso, universal, transparecem a condição da mestria e a veneração de poderes de luz e sombras estendidos e sonegados, e imagino-lhes as interrogações que não despertam angústias.
Enquanto outros tantos, inventando excentricidades sobre realidades que lhes são alheias, sem ousar percorrer a simples e próxima margem de um rio ou contemplar a forma dos legados, se afundam nas fórmulas impiedosas, vorazes, nos confortos miraculosos que os arredam da essência dos saberes, para venerarem superioridades que se atrevem a acreditar serem também suas. Carregando consigo a cobardia de não se reconhecerem ignorantes e negando a grandeza da condição de homens.
O mundo, os modos de vida, a paisagem, os modelos mentais, as ficções transformam-se sem freio. Sem que se peneirem as impurezas que contaminam a civilização e dela fazem uma enfermidade tendo os homens o antídoto do sofrimento ao alcance da reflexão. Será o sentido da comunicação, reduzido ao expoente da técnica, que nos emudece velando a expressão dos sentimentos com o fatalismo da vontade dos deuses? E os sinais cuja natureza lhes atribuímos não serão os nossos próprios erros que os concebem?
As forças da corrente que se não esgota para providenciar o pão, a lenha que alimenta o calor com que se coze, a pedra do abrigo, a lã do agasalho, as chuvas providenciais que saciam as crenças do povo ao beber-lhes a identidade porventura virão a ser um dia escassos. Quando forem património de um passado irrecuperável, como nós alguém irá em demanda de uma miragem pelas margens do Caima fazendo promessas que não se cumprirão, mas as divindades invocadas na forma primordial de que o deserto do progresso sobejou darão forma à recusa do silêncio. Ter-se-á perdido a faculdade de lhes entender o discurso que só a coabitação permite.
Recordo ainda ter confidenciado aos companheiros dessa investida pela Serra da Freita, breve e intensa, apaixonada e ousada, ao termos falado dias depois, que pessoalmente me sentia como outrora, habituado ao inóspito por vocação. Tinha reentrado na atmosfera, ou o que isso pudesse significar.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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