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Os jornalistas estão muito dependentes do poder dominante

Felisbela Lopes, em entrevista à PÁGINA

A comunicação social ? por alguns designada como o "quarto poder" ? tem vindo a estar crescentemente sujeita às pressões dos poderes político e económico, que, directa ou indirectamente, limitam o seu espaço de manobra. E essa é apenas uma das faces da transformação que este sector tem atravessado nas últimas duas décadas. O advento das novas tecnologias da informação veio pôr em questão o papel dos media tradicionais e abrir uma nova era na forma de comunicar.
Para falar destes e de outros temas, nomeadamente da relação entre a comunicação social e a escola, entrevistamos Felisbela Lopes, Professora Auxiliar no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho (UM) e Directora do Curso de Comunicação Social desta instituição.
Doutorada em Ciências da Comunicação com um trabalho de investigação intitulado "Uma Década de Televisão em Portugal (1993-2003) - Estudo dos programas de informação semanal dos canais generalistas", Felisbela Lopes passou pelo ensino público, tendo sido professora profissionalizada de Francês na Escola Secundária da Veiga, em Guimarães, e pelo jornalismo, onde foi profissional no "Público" entre 1990 e 1996. É docente da Universidade do Minho desde 1995. Nesta universidade, integrou a equipa que coordenou a reestruturação da Licenciatura de Comunicação Social e redigiu os dossiers de Bolonha dos cursos de Ciências da Comunicação do 1º e 2º Ciclos.
Para além da sua actividade académica, é, desde Março de 2005, comentadora da RTPN na revista de imprensa deste canal, e integra, desde 2000, o júri do Concurso Nacional de Jornais Escolares promovido pelo jornal "Público". Mantém semanalmente, desde 2001, uma crónica sobre os media no jornal "Correio do Minho" e é colaboradora regular de a PÁGINA desde Janeiro de 2006 na rubrica Comunicação e Escola.

De que forma a comunicação social interfere hoje com o real? Será que é o real que marca a agenda da comunicação social ou o contrário?

Apesar de achar que essa relação é fundamentalmente recíproca, a influência dos meios de comunicação social no quotidiano ? sobretudo da televisão ? é, de facto, decisiva. E isso é particularmente evidente na cobertura da actividade política, já que os políticos têm vindo a condicionar de forma crescente a sua acção aos ritmos deste meio de comunicação.
No entanto, podemos também fazer o raciocínio oposto, visível, nomeadamente, quando ao fim-de-semana lemos jornais e vemos televisão e reparamos que o alinhamento noticioso dos telejornais e da imprensa é substancialmente diferente daquele a que estamos habituados.
Isto, porque os jornalistas estão muito dependentes das fontes e do discurso oficiais, ou seja, do poder dominante. Depois, os próprios jornalistas também não têm habitualmente autonomia para elaborar a sua própria agenda, sobretudo numa época de crise financeira dos media. Essa crise leva a que as redacções não apostem na produção própria e andem a reboque das tais fontes e discursos oficiais, isto é, as instituições políticas, o governo e o parlamento. São estes órgãos quem, no fundo, marcam a agenda dos meios de comunicação social.
Por isso, quando se afirma que os media influenciam a sociedade, esse é, na minha opinião, o discurso mais fácil ou mais visível. Há este lado oculto que convém revelar, e que pode até tornar-se preocupante na medida em que condiciona a actividade dos jornalistas, por vezes de uma forma quase automática.

Falou do poder dominante. Esse poder dominante hoje é o poder político ou é o poder económico que está por detrás do poder político? Qual deles determina, de facto, a informação e a actividade jornalística?

Quando nos referimos aos conteúdos penso que prevalece uma hegemonia política; quando falamos de lógicas de funcionamento elas são condicionadas por uma lógica económica. Quando o mercado publicitário entrou em crise, por exemplo, os media ressentiram-se imediatamente. E existe actualmente um paradigma económico na comunicação social portuguesa, com alguns dos principais títulos da imprensa e canais de televisão a estarem concentrados nas mãos de grupos económicos, como são o caso, entre outros, do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF, do Expresso e da Visão, ou dos canais por cabo associados à SIC. Se essas fusões podem ter um lado positivo, permitindo gerar sinergias, elas têm também um lado perverso, ao limitar o mercado e a margem de manobra dos jornalistas.

Acha que em Portugal essa relação entre os poderes político e económico e a informação é ainda relativamente saudável ou ela começa já a sofrer de vícios e a estar muito determinada em função desses poderes?

Eu não sou muito apologista da teoria da conspiração política ou dos grandes grupos económicos. No entanto, acho que existe um fenómeno que tem vindo a desenhar-se no nosso panorama audiovisual, desde os primeiros anos deste século, que considero preocupante: a preponderância no horário nobre de programas de entretenimento ? do qual o "Big Brother" foi o percursor.
O aparecimento do Big Brother inaugurou uma outra forma de fazer televisão, desalojando a informação semanal das grelhas de televisão, coincidindo com uma crise sem precedentes na imprensa desde 1991. E essa crise originou dois fenómenos: que a imprensa se tenha centrado sobretudo nas fontes oficiais, no discurso dominante, e que ao mesmo tempo abrisse espaço ao entretenimento.
Ou seja, na televisão a informação ficou com menos espaço e circunscrita aos noticiários (com a excepção, nos últimos tempos, dos canais públicos) e nos jornais verificou-se igualmente esse decréscimo de qualidade ? talvez a um nível diferente, mas que não deixa de representar um decréscimo abrupto de qualidade. A esse nível estamos de facto mais pobres.

Informação versus entretenimento

Porque razão pensa que as pessoas estão a perder o interesse pelos jornais e pela informação de referência? Não é estranho que tendo havido um claro aumento de qualificação dos portugueses nos últimos anos ele não corresponda a uma maior exigência informativa?

De facto, mas não tenho uma resposta para esse fenómeno. Por outro lado, essa informação de referência também perdeu qualidade. Porque quem compra o Expresso e o Público ? apenas para referir dois exemplos ? são leitores exigentes e informados, que habitualmente ouvem rádio e vêem os serviços noticiosos na televisão. E quando no dia seguinte compram o jornal querem mais e melhor informação e não a mesma da noite anterior. Mas dado que a imprensa vive uma crise de investimento nas redacções e nos jornalistas, os jornais vivem praticamente da agenda oficial, ou seja, repetem aquilo que já ouvimos no dia anterior. Dessa forma, para quê gastar 1 euro ou 80 cêntimos para saber aquilo que já ouvimos? Não vale a pena?

O aparecimento de jornais gratuitos e a sua consolidação no mercado da comunicação social é também paradigmático dessa situação? Acha que a longo prazo poderão substituir os jornais pagos?

Acho difícil, mas sem dúvida que eles estão a ganhar um lugar de relevo no campo dos meios de comunicação social. Exactamente porque apostam em informação de consumo rápido e em conteúdos de entretenimento, e nós convencemo-nos que temos ali a informação do dia.

Os leitores mais exigentes de que há pouco falávamos estarão a procurar revistas ou órgãos de comunicação mais especializados?

Eventualmente?

Há algum estudo que se tenha debruçado sobre este tema?

Bom, na minha tese, por exemplo, analisei as audiências da programação informativa da televisão portuguesa e pude verificar que existe uma discrepância entre este critério e o "share" de espectadores anunciados pelas televisões e que este se tem vindo a reduzir drasticamente, o que significa que há muito gente que não está sintonizada na televisão generalista mas noutras plataformas, como a televisão por cabo e a Internet.

Considera que os media tradicionais e os mais contemporâneos podem funcionar em complementaridade ou tenderão a concorrer entre si?

Não funcionam em complementaridade porque têm lógicas diferentes. Os media tradicionais não estão organizados de forma a permitir a bi-direcionalidade, ou a interactividade, se quiser. Os meios de comunicação associados a plataformas digitais permitem isso. Portanto, eles nunca podem funcionar em concorrência, e também não funcionam em complementaridade porque não há lógicas de continuidade entre os dois.
Os media portugueses, por exemplo, estão on-line há mais de dez anos, mas têm páginas totalmente anacrónicas em relação às tendências actuais. Na prática, são os jornais do dia "despejados" nos respectivos sítios da Internet e nem sequer divulgam a versão completa. E não é preciso ir tão longe quanto os Estados Unidos ou o Reino Unido para perceber que lá fora se aposta mais fortemente nesta plataforma. Basta olhar para o caso espanhol.

O espaço informativo na Internet está então a ganhar espaço aos meios tradicionais? Provavelmente não tanto ainda em Portugal, mas é uma tendência geral?

Sim, completamente. O que implica outro perfil de jornalista, um profissional com perfil multimédia que coloca on-line a informação que recolhe. Hoje em dia está a deixar de fazer sentido falar em jornalista de imprensa, de televisão ou de rádio.

Acha que as novas gerações estão mais longe ou mais perto da imprensa? Referindo-me especificamente à imprensa?

Estão mais afastadas, porque é uma geração que cresceu à frente do computador e está muito familiarizada com a imagem e os textos no écran. Ao contrário das gerações mais velhas que, na maior parte dos casos, precisam, por exemplo, de imprimir os textos que aparecem no computador.
Não é por acaso que os jornais começam a ter uma preocupação crescente de apostar em edições on-line, porque perceberam claramente que entre os leitores do suporte impresso não estão as classes etárias mais jovens. E não é apenas porque elas não têm poder de compra, é porque, de facto, não lhes interessa aquele meio e aqueles conteúdos, porque se interessam por outras realidades. As tecnologias, a ciência e o ambiente, por exemplo, são temas escassamente abordados nos jornais tradicionais e que têm muita divulgação nos meios de informação digitais.
Depois, esta geração está habituada a ter as suas comunidades, nomeadamente no "messenger", e é através dos novos meios digitais que conseguem entrar nessas micro-comunidades. E isto é algo que os media tradicionais não oferecem.

Ou seja, a informação tende a andar a par com o entretenimento...

Essa é uma tendência global. Basta olhar para os jornais europeus, e mesmo para os portugueses, e ver as reformulações gráficas que têm sido feitas no sentido de reduzir o espaço dedicado ao texto. Eu trabalhei no Público no início dos anos 90 e nessa altura fazíamos peças de sete mil, oito mil caracteres. Hoje não cabem mais de cinco mil caracteres na página de um jornal, apesar de ela manter o mesmo tamanho. O tamanho da letra é maior, há muito espaço para "respiro", para as imagens, que prendem o leitor, sem, no entanto, lhe dar mais informação. E isto abre portas para o entretenimento, no sentido mais epistemológico do termo, não acrescentando mais valia à informação.
Neste sentido, há uma crescente componente espectacular do entretenimento, fruto de uma contaminação do audiovisual, combinando por vezes de forma perigosa o espaço público e o espaço privado. Os políticos, por exemplo, são frequentemente retratados ao lado da família, através de grandes planos ou planos de pormenor ? destacando o lado humorístico, os gestos ? interessa-nos muito saber se têm uma aliança, um sorriso, se põem a mão por cima da mulher, se dão a mão, etc? E assim se vão preenchendo espaços de informação.
Não podemos dizer que os media são os maus da fita porque eles se limitam a seguir uma tendência global. No entanto, penso que os media tendem a exacerbar essa tendência, o que contribui para uma leitura exagerada da realidade e que acaba por lhe passar ao lado. E aí já não se está a privilegiar a informação.

A comunicação social e a escola

Gostaria de finalizar esta entrevista abordando a relação entre os meios de comunicação social e a escola, que actualmente não é a mais pacífica. Qual a razão para este conflito latente?

De facto, e de uma forma geral, a escola e os professores têm hoje uma imagem bastante negativa nos meios de comunicação social.

Porquê é que isso acontece?

Eu responderia colocando outra questão: quando é que a escola tem sido notícia? Pelas manifestações dos professores. Depois, alguns meios de comunicação social passam a imagem de que os professores têm alguma dificuldade em cumprir o seu horário; que não actualizam os seus saberes; que são incompetentes; que as escolas são lugares em degradação; que os alunos são mal comportados. Enfim, dir-se-ia que a escola é quase vista como um gueto da sociedade para quem a observa do exterior, quando a realidade, de facto, é bem diferente.

Mas porque razão é essa a imagem que passa?

Penso que existem responsabilidades de ambos os lados. Por um lado, os media não percebem o sistema escolar e o espaço que ele ocupa na sociedade. Reflexo disso é o facto de a educação não ter um espaço próprio e legítimo na comunicação social, dividindo o espaço noticioso com outros sectores sociais. Por outro lado, porque os próprios professores também não percebem muito bem as lógicas de funcionamento da comunicação social e porque os actores do campo educativo são invariavelmente representados pelas organizações sindicais.
Depois, porque quando os professores produzem trabalhos válidos não os procuram mostrar à comunidade, não são pró-activos. Eu integro o júri do "Público na Escola" e todos os anos vejo trabalhos muito interessantes desenvolvidos nas escolas. Há professores a fazerem um trabalho extraordinário, que seria notícia e se tornaria visível se os jornalistas fossem chamados a conhecê-lo.

Tudo se resume, então, a uma incapacidade de comunicação?

Não, eu penso que os professores sabem comunicar perfeitamente. Nas alturas em que reivindicam eles fazem-se ouvir, são notícia. O que talvez faltará é divulgarem notícias positivas que têm habitualmente pouca visibilidade no espaço público.

Mas até que ponto a agenda determinada pelos jornais e pelos poderes de que há pouco falávamos não condiciona, até certo ponto, essa visibilidade?

O argumento de que os jornalistas não se interessam não é totalmente verdadeiro. Julgo que é preciso um trabalho mais aturado de divulgação. Concordo que será difícil fazer a abertura de um telejornal, mas se calhar é possível ter a primeira página de um jornal regional. E se começarem a ocupar muitas vezes a imprensa regional podem de igual modo ter lugar nas rádios locais, que, por sua vez, entram em antena com as rádios nacionais. E podem procurar fazer um agendamento junto dos correspondentes de jornais nacionais ou fazer chegar aquilo que fazem junto dos semanários, que habitualmente têm mais espaço para este tipo de reportagem. Afinal, quantas conferências de imprensa organizam os professores portugueses para mostrar à comunidade aquilo que fazem?
Depois, há uma espécie de círculo mediático onde os professores e a educação aparecem associados aos sindicatos e às manifestações. E esta mediatização, que nem sempre credibiliza os professores, deixa margem de manobra para um agendamento que propicia a acção do governo.
O discurso mediático tem sempre repercussões. E isto é válido tanto para a educação, como para a política ou o futebol - são os "clássicos". Há sempre efeitos dos desenhos feitos a partir da realidade. Convém perceber é quem é mais pró-activo nestes desenhos.

Na sua tese de doutoramento defende que "a televisão não é um espelho mas sim um prisma da sociedade". Acha que esta ideia pode ser transposta para a forma como a comunicação social em geral aborda as questões educativas?

Sim, esse exemplo serve perfeitamente para ilustrar aquilo que estávamos a falar. Quando se fala em professores a ideia que nos pode ficar é de uma classe que não quer trabalhar, que é ociosa e se limita a reivindicar. Mas existe uma maioria que é trabalhadora, que prepara as aulas, que se preocupa com os alunos, que faz um esforço diário para lhes ensinar alguma coisa. Esses professores, que são uma imensa maioria, não são notícia. E não são notícia não apenas porque os jornalistas se esquecem deles, mas porque eles próprios também se esquecem que têm lugar neste espaço público mediatizado.
E quem fala nos professores pode também falar da questão do género. Quem são aqueles que, em termos de género, ocupam predominantemente o espaço público mediatizado? Na sua maioria são homens. Os homens aparecem quase sempre a falar dos aspectos mais sérios, as mulheres são habitualmente chamadas para falar de assuntos mais triviais. Representam os estereótipos, porque há um olhar não para o todo social mas para uma parte dele, que os media convencionaram que é a parte mais representativa. Isso significa que a televisão não consegue espelhar a sociedade. Cria um prisma, que nós em casa pensamos que é um espelho.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Felisbela Lopes
Professora de Jornalismo na Universidade do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Felisbela Lopes
Professora de Jornalismo na Universidade do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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