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O "espírito europeu" e os outros
Quem leu o discurso, que o semanário EXPRESSO publicou, proferido por Durão Barroso numa conferência realizada, no passado mês de Novembro, em Berlim, sob a égide da Comissão Europeia, haveria de compreender as reservas levantadas por alguns dos seus pares, que entendiam não ser adequado ao Presidente falar da "dimensão cultural" da Europa, área em que a Comissão, segundo eles, tinha reduzida competência.
Na verdade, se já o título do discurso ?"Uma Alma para a Europa"- abria a porta à controvérsia, num momento em que se questiona a entrada plena da Turquia, defender que os valores do "espírito europeu" ? ditos da liberdade, do humanismo e da tolerância - não são negociáveis, era o mesmo que dizer "não" e em voz alta (palavras de Barroso) à candidatura do que seria o país mais populoso da União Europeia, tendo apenas uma pequeníssima parcela do território inserida no continente europeu e possuindo uma matriz cultural predominantemente muçulmana, com tudo o que isso implica no modelo de sociedade.
Noutro tempo e noutras conferências participadas por figuras de primeira plana da Cultura, como foram os Encontros Internacionais de Genebra, já tinha sido debatido o tema agora aflorado por Durão Barroso: designadamente, no primeiro, em 1946, em torno do "Espírito Europeu", e o oitavo, em 1953, diante da "angústia" provocada pelas "ameaças" da União Soviética e da Ásia ? sobre "A Angústia do Tempo Presente e os Deveres do Espírito".
Eram discursos tendencialmente axiológicos, em que se analisava a necessidade de defender os valores civilizacionais da Europa que sobrevivera, qual Fénix ressuscitada, à barbárie nazi, e se refundava o "Espírito Europeu" a partir dos rizomas do cristianismo e da Revolução Francesa, tendo por cânones a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
Sobre esta tríade, assentou o seu discurso o ministro francês Robert Schuman, - que seria, cinco anos depois, presidente do Parlamento Europeu - mas colocando uma segunda tónica no imperativo de a Europa se organizar política e economicamente. "A Europa necessita de viver melhor pondo em comum a plenitude dos seus recursos. Deve tornar-se uma entidade actuante, consciente das suas particularidades, organizando-se em vista das respectivas necessidades e possibilidades particulares. Encontra-se situada no centro de um mundo que deixou de ser também uma massa informe e confusa, que só desperta quando espicaçada pelos conflitos esporádicos. A questão da Europa encontra-se assim posta independentemente do perigo comunista ou asiático."
Durão Barroso repetiu genericamente as reflexões de Schuman, com as variantes surgidas no intervalo de cinquenta anos: o "perigo comunista" foi substituído pelo "crescendo do fanatismo e do fundamentalismo" (que em 1953 não eram problema, pois cada um estava em seu sítio), e quanto ao "perigo asiático" (Schuman prefigurava-o pela China, Índia e Japão), cumpriria à globalização neo-liberal (que Barroso introduz no seu discurso) neutralizar os demónios emergentes...
Diz Barroso: "A globalização pode gerar em alguns europeus um sentimento de alienação e até de perda de identidade. Isso não deve acontecer. A Europa tem de responder. E a melhor resposta que pode dar é preservar os seus valores. Preparando-se para enfrentar as novas formas de concorrência no mercado mundial e fazendo apelo ao seu capital humano e ao seu saber, a Europa pode dotar-se dos meios necessários à construção de uma sociedade europeia dinâmica, criativa e aberta. Acima de tudo, é adaptando-se à mudança que a Europa será capaz de permanecer fiel aos seus valores."
Schuman também se mostrava favorável a uma "abertura", e, evocando a adesão, em 1949, da Turquia ao Conselho da Europa e à N.A.T.O., concedia que uma "Europa nova seria uma síntese e uma integração 'culturais' mais amplas e não limitada de forma alguma a uma tradição de cultura limitada e acanhada."
Mas foi Mircea Eliade, reputado cientista social romeno, quem, focando as culturas asiáticas, dilucidou o significado e o alcance duma "abertura" e/ou "adaptação":
"Se a cultura ocidental não deseja provincializar-se, será obrigada a estabelecer o diálogo com as outras culturas não europeias, esforçando-se por não se enganar demasiado no sentido dos termos. É urgente para nós compreender a forma como estamos situados e iremos ser julgados, como forma cultural, pelos participantes das culturas extra-europeias. (...) Para adivinhar de que maneira seremos situados e julgados pelos representantes das outras culturas, torna-se indispensável aprendermos a confrontar-nos com elas, e isto só será possível se lograrmos colocar-nos na perspectiva do seu horizonte religioso. É somente nesta perspectiva que o confronto se tornará válido e útil."
Era então inimaginável um futuro afectado pelas "angústias" de um ameaçador Islão não laico nem republicano, tão avesso ao espírito da Bíblia e da Revolução Francesa quanto fiel ao espírito do Corão e do Califado.
Donde, se a Europa não "negociar" as fronteiras das duas civilizações que uma história de séculos ainda não diluiu, - sem prejuízo dos negócios que sempre realizaram, e dos quais a decantada Globalização é a moderna variante - o "diálogo entre culturas" almejado por Barroso não passará de um diálogo de surdos. Entenda-mo-lo: "Escutemos. Estendamos a mão. Mas afirmemos também que, enquanto europeus, pomos os nossos valores de tolerância e liberdade acima de qualquer outra coisa."
Dir-se-á então que o problema da Europa, hoje, é só um: escolher (se não for conciliável) entre os deveres do seu espírito e as exigências do mercado global.

  
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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