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Centenário do nascimento de Miguel Torga (1907-2007)
Na passagem do centenário de nascimento do autor de Os Bichos, não posso deixar de evocar a satisfação pessoal sentida na altura de receber o "Prémio Literário Miguel/ Torga / Município de Coimbra" que em 1994 foi atribuído ao meu livro Mar de Palha, quando Torga ainda estava vivo e a tempo de publicar o último volume do seu Diário, que fechou uma vasta obra literária construída em mais de sessenta anos e que é, sem dúvida, uma das mais fecundas e exemplares do século vinte português.
Nascido em São Martinho de Anta (Vila Real), muito cedo Miguel Torga se radicou em Coimbra depois de uma breve passagem com consultório médico em Leiria, e o facto de se fixar na Lusa Atenas depressa o fez ligar-se aos grupos literários da cidade e embarcar depois na aventura do movimento da Presença, de que foi um dos fundadores e um dos mais entusiastas defensores, sem esquecer as raízes do berço transmontano tão patente na sua obra poética e, sobretudo na prosa de ficção.
De facto, o sentido telúrico de toda a obra torguiana, associado a uma visão humaníssima da vida e do mundo e na linha de efabulação narrativa e ficcional do conto tradicional português, como por exemplo em Contos da Montanha, Vindima ou O Senhor Ventura, tudo serviu para consolidar essa alargada obra literária, marcada por um humanismo existencial e panteísta sempre presente nos seus livros ou por um "desespero humanista", como em tempos observou Eduardo Lourenço, por ser essa uma das vertentes mais expressivas de toda a obra de Torga.
Neste modo próprio de evocar os cem anos de nascimento do autor de A Criação do Mundo, podemos ainda lembrar como declarou numa das páginas do último Diário, que tudo aquilo que escreveu, terá sempre de passar por dentro de si, por não saber estar na literatura de outro jeito nem a entender despida ou despojada de sangue e nervos e não haver nisto nada de exagero. E, ainda na lembrança de Torga, a quem o Pai oferecera um cavaquinho na altura em que ficou "distinto" no exame de 4ª.classe, dizer que muitas são as suas personagens que entoam outra música vital no modo de afirmação pessoal ou na certeza de nunca esquecerem as suas profundas raízes.
Mas relembro ainda que em 1996 voltei a estar bem perto do autor de Poemas Ibéricos quando pela segunda vez recebi o prémio literário que tem o seu nome pelo livro Crónica de Damião, onde recupero a memória viva de Damião de Góis, o grande humanista do nosso Quinhentismo e nas palavras que então pronunciei em Coimbra não deixei então de evocar a memória deste grande escritor; Cidadão do Mundo e um exemplo vertical de quem na vida e na literatura soube consolidar a sua obra literária.
Por último, salientar ainda que, tal como Torga declarou no Diário, sempre ele se expôs nas montras timidamente, como um culpado contrito, quase a pedir desculpa aos ocasionais leitores do seu atrevimento, mas sempre ufano e seguro da própria vocação, nada mais pretendeu do que cumpri-la, "e ser humilde e livremente um fala-só que falasse por muitos". Mas sabemos hoje que a sua obra literária está viva e ainda fala connosco em muitas das suas histórias e poemas. depois de ter partido desta vida há
poucos anos e na confirmada atitude de assim se ter cumprido nos cem anos que agora passam sobre o nascimento de Miguel Torga.
E, sempre na forma de saber em plena consciência e na nobilíssima visão de Mário Cesariny na hora da sua morte recente, que

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come.

  
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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