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Resiliência ou sobre como tirar leite de pedra
No Brasil, temos uma expressão muito interessante para falar de coisas consideradas impossíveis. Diz-se: fazer isso é como tirar leite de pedra ou Fulano é capaz de tirar leite de pedra.
Poderíamos dizer que é a esse fenômeno que se reporta o termo resiliência, utilizado para referir-se à condição de pessoas que viveram situações de privação, situações nas quais tudo indicava que não havia a menor possibilidade de sobrevivência criativa, o que, surpreendentemente, acontece.
Desenvolvida no campo da física, a noção de resiliência está relacionada à capacidade de resistência ao choque apresentada por alguns materiais e a seu retorno, após o impacto, ao estado inicial. No campo do humano, entretanto, não poderíamos pensar na possibilidade de se passar por um grande choque, um evento potencialmente traumático, e voltar ao estado anterior.
Esta é a razão pela qual os primeiros estudos sobre a resiliência têm sido alvo da crítica de boa parte dos pesquisadores contemporâneos, já que identificavam esta possibilidade de superação como uma capacidade psicológica interna, individual, compreendida como invulnerabilidade ou como uma habilidade de adaptação positiva ao choque.
A relevância dessa crítica deve-se ao risco da utilização ideológica do elogio da criatividade e da utilização de recursos pessoais a serviço de suportar situações de adversidade que exigiriam, não uma resposta de adaptação, mas, ao contrário, deveriam contar com a recusa, a resistência e a indignação do sujeito exposto à privação, como forma de suscitar a responsabilidade social aí implicada.
A situação cotidiana de privação a que vemos submetida grande parte da população em nosso país, e em tantas outras áreas onde a precariedade é norma, não nos permite o conforto de esperar que a solução esteja numa capacidade pessoal de resistência a uma realidade com tal potência traumática.
As noções de invulnerabilidade e adaptação positiva não são, portanto, boa estratégia para uma metodologia de análise da resiliência, pois o que pode antagonizar com as forças traumáticas é exatamente o contrário disso: é a possibilidade, de alguma forma instaurada na experiência do sujeito, de se deixar afetar por novas vivências, experiências capazes de produzir espaços de restauração de sua força vital. Isto só é possível com a participação de um outro interessado em investir nessa contra-corrente ao movimento dos efeitos traumáticos, interessado em provocar uma reação ativa e não uma adaptação passiva.
O mecanismo de favorecimento a uma atitude resiliente teria então que se dirigir ao estabelecimento de recursos, produzidos pelo ambiente, de acolhimento, isto é, de negociação com as forças produzidas pela adversidade ? revolta, isolamento, resignação subserviente, vergonha, ódio e medo - para a saída da imobilidade provocada pela dor e pela desesperança, e o conseqüente retorno a um estado de potência, de vitalidade e atividade do sujeito. Estamos falando de um mecanismo não meramente psicológico, mas de políticas do cotidiano para construir o espaço de retomada a algum desenvolvimento, a retomada do movimento de investimento na vida, para além da sobrevivência; aquilo que possibilita transformar uma violência sem sentido e sem resposta em uma reação plena de significação e plasticidade, ainda que afetada pela dor.
Tal abordagem sobre a resiliência afasta-nos de uma concepção assistencialista; pelo contrário, trabalha no sentido de procurar os movimentos, os territórios, as relações, os pequenos eventos do cotidiano que, articulados (nem sempre didaticamente articulados), fazem a composição de um sentimento de confiança de que é possível lidar com a tensão, inscrevê-la num circuito de trocas com o outro, de forma que tanto a dor quanto o desejo de transformação possam ser sustentados. A idéia não é a de produzir sujeitos resilientes, possuidores de uma identidade de resiliência, mas marcas de resiliência, matrizes de onde se poderia multiplicar a potência de agir ? e, às vezes de produzir alegria, adaptação ativa, encontro - ao longo da vida.
Tenho ouvido objeções quanto à utilidade do conceito de resiliência. Entretanto, em meu trabalho no campo da educação, pesquisar este tema tem sido bastante útil para discutir estratégias cotidianas de superação, de enfrentamento, de desidealização da harmonia ? que freqüentemente se traduz em apatia -, de valorização da tensão dos encontros como produtora de novos recursos, de convencimento, essencial para um professor, da importância de insistir no investimento na vivacidade e erotização do cotidiano, dado que a rotina costuma ser um rolo compressor de desejos, exatamente porque ela nos protege dos conflitos.
Além disso, a pesquisa sobre a resiliência tem evidenciado que tirar leite de pedra conta, com espantosa freqüência, com o humor, a expressão artística e as manifestações de expressão cultural, que vão formando redes de afirmação da vida, com todos os seus paradoxos. Nesse sentido, as relações de ensino na escola têm muito a aprender com os movimentos de cultura popular, cuja organização conta com o que a escola insiste em transformar em desvantagem: a convivialidade, a regularidade dos encontros, que prepara um campo de consistência afetiva para a possibilidade de ressignificação de certezas desvantajosas e para a invenção de uma esperança que não conta com a ingenuidade, mas com a experiência, marcada sensorialmente, não sem dificuldade, de que vale a pena se arriscar a viver cada dia.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Sandra Cabral Baron
Mestra em Educação, Doutora em Saúde Coletiva, Professora pesquisadora da UFF e FIOCRUZ, Psicóloga
Sandra Cabral Baron
Mestra em Educação, Doutora em Saúde Coletiva, Professora pesquisadora da UFF e FIOCRUZ, Psicóloga

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