Se o Pai Natal tivesse Língua, não havia prendas p'ra ninguém!
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Os meus há muito tempo alunos dos primeiro e segundo anos do primeiro ciclo poderão ainda lembrar-se de como, com uma frase do género "O Diogo comeu o bolo.", nós brincávamos dias a fio: tirando "O Diogo" e pondo "O cão", ou "O Manuel", ou "O armário", ou ainda "A Marta", "A Filipa", "A gata"; substituindo "comeu" por "trincou", ou "engoliu", ou "lambeu"; e "o bolo" por "o biscoito", "o peixe", "a carne", ou "a fruta"; e ainda de como, jogando com as possibilidades de conexão sintáctica e semântica, nos divertíamos com a irreverência de frases do tipo "O biscoito comeu o cão.", que nos permitiam construir histórias da mais espontânea (e bela) ficção, ou textos de inegável cariz pragmático, muito sérios e de enorme funcionalidade, ou desencadear outras formas de expressão. Os meus alunos de 9º ano recordam bem como, antes de aprendermos a classificar proposições de "Os Lusíadas", passámos horas, com leitura expressiva, com fichas ou jogos de trabalhos em grupo, ou simplesmente num apego colectivo aos rabiscos no quadro negro, a "estripar", "esboroar", "retalhar" e recompor, num trabalho de patchwork, aquelas "colchas" nas suas imensas superfícies e profundidades que são as frases do poema nacional. Só depois de tudo isto, em qualquer um dos ciclos, se aprendia a nomear, a "catalogar", para que o pensamento pudesse estruturar-se melhor, de acordo com determinada lógica classificatória. Isto sem deixar de se apreender muito bem os conceitos (o sujeito, o predicado e o complemento directo, nos últimos anos do 1º Ciclo ? concepções difíceis para quem tem 8 ou 9 anos; ou as conjunções e as orações subordinadas, no 3º Ciclo - não menos problemáticos para quem tem 13 ou 14 anos). Não nego aqui a memorização como forma de aprendizagem, importante pelo menos nos dois primeiros ciclos; nem o valor estruturante das nomenclaturas gramaticais, se se respeitar a capacidade de abstracção dos jovens, de acordo com o seu nível etário. Os meus alunos dos Complementos de Formação da ESE do Porto, professores do 1º Ciclo, sabem bem que sempre tentei transmitir-lhes a ideia de que é mais importante ensinar os nossos alunos a pensarem por si sós do que "transferir" para as suas cabeças tudo o que o ME exige. Desenvolvendo competências de compreensão e de expressão, aprendendo que não há verdades absolutas, dominando a capacidade de criticar coerentemente e descobrindo que a democracia, de acordo com os contextos, pode ter significados tão diferentes. Sou contra uma cultura que, dizendo-se gramatical, é "academizante", fechada em si mesma para constituir assunto para testes e exames, sem nunca avaliar qual a verdadeira formação dos jovens para o exercício da expressão verbal no quotidiano (para não falar nas outras), oral ou escrita. Esta cultura que pretende ser, mas não é, académica enquadra-se sem dificuldade no protótipo de certa cultura da ligeireza, onde se inserem a moda, a comunicação rápida, a falta de tempo e de espaço, ou onde conceitos como qualidade, competitividade, ou excelência se concebem em função de qualquer recompensa como um carro novo, uma piscina ou uma passagem no exame de determinada disciplina. Criar o verdadeiro interesse e o desejo pela aprendizagem ao longo da vida, a motivação e a busca de capacidades para resolver problemas, parece não interessar; porque se quer que outros, nesta sociedade de "cibermediamilionários", resolvam por nós. Há quem goste de línguas de bacalhau, ou de linguiça, ou de línguas de gato. Mas eu, nestes campos da didáctica e da pedagogia continuo a optar, sem precisar ser língua-de-trapos, pelas línguas de "perguntador", para que se questione o Mundo em que vivemos. Por isso não percebo a ideia de impor uma Terminologia Linguística para os Ensino Básico e Secundário que muitos dos docentes ainda não conhecem e inadaptada à cultura da maior parte dos jovens que temos. Não deixa de ser louvável o trabalho dos linguistas, dinamizados pelo ME e pela APP (a experiência durante três anos, um CD-Rom, alguma formação) que procuraram fazer o que desde 1967 não era feito e, pelo contrário, ia sendo desestruturado em imensas tendências. Claro que há os problemas da formação e da resistência à mudança dos professores. Mas parece que há ainda muito a fazer. Por outro lado, lembrarei ainda os meus alunos de Português e Ensino do Português I, do 1º ano da ESE, da formação inicial. Eles, já com 18 anos ou mais, sabem bem o que passámos para que fossem apreendidos conceitos complicados da Linguística, especialmente da Pragmática, como, entre outras, as noções de performativo e constativo, a doutrina das infelicidades de Austin, os tipos de actos ilocutórios, as pressuposições e as implicaturas, ou a força ilocutória dos actos directivos. Agora querem meter tudo isto na cabeça dos jovens do Secundário. Basta olhar para os manuais e para as novas gramáticas. O problema reside sempre na didáctica. Se se trabalhasse os textos, co-textos e contextos e se tratasse depois a nomenclatura com cuidado? ainda acreditava. Mas assim? Bom era que os jovens dominassem a Língua. A Portuguesa. Com a confusão que para aí vai, se o Pai Natal tivesse Língua, não havia prendas para ninguém!
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 15, Dezembro 2006
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Autoria:
Professor do Ensino Secundário
Professor do Ensino Secundário
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