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A refundação da direita e o mito da hegemonia da «esquerda»
A tradicional divisão entre esquerda e direita, ainda há bem pouco tempo inquestionável, parece hoje uma questão do foro museológico. Apesar do impacto que a queda do muro de Berlim e do alegado colapso do marxismo-leninismo tiveram nesse processo de superação ideológica que alguns têm designado por «fim das ideologias» e outros por «pensamento único», colapsando igualmente a polaridade estabelecida após a Segunda Guerra Mundial entre dois mundos aparentemente antagónicos, tem sido a direita a afirmar a necessidade do que designa por refundação ideológica. De facto, parece haver razões para tal empreendimento, pois a «esquerda» tem vindo a adquirir uma hegemonia política e ideológica tal que nem os mais impenitentes optimistas de esquerda alguma vez poderiam imaginar. Vejamos alguns exemplos dessa hegemonia.
Durante a década de 90, um espectro assolou a Europa: a maioria dos países que integravam a UE passaram a ser governados por partidos socialistas, após uma década de governação ultra-liberal nos principais países de expressão anglo-saxónica, liderados pelos EUA e, sobretudo, pelo Reino Unido. A resposta às políticas neoliberais, caracterizadas pelo violento ataque ao Estado Social de Bem-Estar, ao mundo do trabalho (privatização, deslocalização de empresas, flexibilização laboral e precariedade generalizada), foi mais neoliberalismo, agora promovido por forças que continuaram a afirmar-se como de esquerda.
A financeirização da economia, a mercantilização dos principais serviços públicos, a deslocalização das empresas, o ataque aos sindicatos, a precarização das condições de vida e de trabalho e o aumento do desemprego passaram a constituir as principais linhas de orientação desses governos ditos de esquerda. A ausência de uma alternativa ao modelo de desenvolvimento capitalista iniciado na década de 80, a chamada TINA (There is no alternative), formulada por Margareth Thatcher e conhecida, sugestivamente, como Consenso de Washington, parece adquirir uma validade que poucos estavam dispostos a admitir, nomeadamente os diferentes partidos socialistas quando na oposição. "Fora da globalização não há salvação; dentro da globalização não há alternativas", dizia-nos Fernando H. Cardoso, antigo presidente do Brasil, considerado por muitos como um inquestionável homem de esquerda. Recentemente, fomos surpreendidos com mais duas notícias sobre este poder incomensurável da «esquerda» que estávamos longe de suspeitar: a primeira sugeria-nos que a invasão do Iraque teria sido motivada pelo fervor democrático dos conselheiros políticos da actual administração americana, reconhecidos neoconservadores mas?de esquerda! A segunda, concebida por mais um destacado «neoconservador de esquerda» da nossa praça (o director do Público), apresenta-nos Milton Friedman (recentemente falecido), insuspeito ultra-liberal e inspirador das políticas económicas mais agressivas produzidas no último quartel do século XX, como um destacado humanista, tendo feito, em sua douta opinião, mais pelos pobres e excluídos que todos quantos se afirmam de esquerda, juntos!
Entre nós, a propósito da governação socialista que nos tem assolado no último ano, temos assistido à emergência de uma parafernália de artigos de opinião de (até há um ano) insuspeitos homens de esquerda, todos eles indignados ante a perspectiva do referido governo poder ser catalogado como de direita. É assim que Prado Coelho e Vital Moreira nos surgem como os novos paladinos de uma esquerda preocupada em limitar a acção dos sindicatos, em promover cortes generalizados nos serviços públicos, nomeadamente na saúde e na educação, em considerar os trabalhadores da administração pública como os principais privilegiados do país, a advogar a criação de quadros de descartáveis humanos, políticas de avaliação de desempenho destinadas unicamente a limitar a parte da despesa pública destinada aos salários, a defender uma política educativa agressiva e populista cuja consequência mais imediata será a destruição, quiçá irreversível, dos modos de funcionamento democrático das escolas portuguesas tão dificilmente conquistados (como Fátima Antunes sublinhou no último número da Página da Educação).
Com uma «esquerda» deste tipo, não admira que a direita dita clássica se encontre em acelerado processo de crise identitária, pois sente-se (legitimamente) desapossada dos principais elementos que sempre a caracterizaram. A partir deste cenário, a questão que verdadeiramente se coloca é a da reinvenção da esquerda. À Direita o problema parece ser, apenas, a alternância na governação, como os EUA amplamente comprovam.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho

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