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A exuberância do sagrado

O tempo das exuberâncias III

Hoje, vivemos o tempo do exagero das formas e recusam-se ou evitam-se espaços e tempos vazios. Sobretudo, parece desejar-se a nomeação dos tempos, o seu registo visível. A vigilância é exercida sobre os tempos não regulados, sobre o consumo do tempo, sobre a obediência à organização do tempo. Ter tempo parece ser, hoje, o verdadeiro poder.
Os discursos produzidos sobre o tempo são diversos: «tempos mortos» (desde quando os existem na escola ou em outro sítio qualquer?); rentabilizar o tempo; ocupação plena do tempo; a escola a tempo inteiro.
Ora, sendo o tempo aquele que hoje exige o seu constante preenchimento, procura-se fugir ao que é vazio, ou fruído vaziamente, do ponto de vista institucional, menos do ponto de vista dos sujeitos. Parece até pretender-se uma certa redenção a partir da ocupação do tempo que se fragmenta em segmentos consumíveis pelos clientes, próprios de uma sociedade do consumo: os/as estudantes, as famílias e os/as professores/as. A que exigências sociais  procura, então, responder a escola?
As matérias do despacho n.º 17387/2005 de 12 de Agosto estabelecem a organização do horário semanal dos/as professores/as. Estipula-se o tempo a prestar: 35 horas semanais que representam simbolicamente a transformação de um profissional reflexivo, cuja relação com o tempo sempre foi marcada pela complexidade do campo educativo, e reduzem-se os/as professores/as a profissionais executores que estabelecem uma relação empresarial com o tempo. Reifica-se a actividade em detrimento da praxis e esquece-se que o tempo sem horas lectivas não corresponde a horas de extravio, sem referências ao trabalho.
É nos contextos de tempos e espaço menos regulados que igualmente se organizam e mobilizam saberes que são estruturantes e actualizadores da profissionalidade docente. Reconhece-se, então, um movimento de intrusão que emerge pela tentativa de instituir padrões não compatíveis nem com o pensado, nem com o vivido ao nível individual e comunitário nas escolas. Esta organização instituída e compensatória do tempo pode provocar a morte de dinâmicas e de formas de organização locais.
Assim, a imposição de uma ordem a partir da morte de micro ordens organizadoras da vida na escola origina uma certa precariedade simbólica das competências. Esta precariedade operacionaliza-se no cumprimento de tarefas marcado por uma relação de exterioridade e de ausência de sentido. Mata-se a regularidade e a rotina que gera a confiança (Pais, 2002: 31) e emerge o ambiente inóspito à constituição de um profissional comprometido sobre o qual recaem mais do que nunca extensas expectativas sociais.
A excessiva regulamentação dos quotidianos, da forma comum de viver os dias nas escolas, o excesso da norma no sentido do controlo, só provoca o aumento da resistência por parte dos actores/as da escola: professores/as e alunos/as(1). Por outro lado, esta organização do tempo não lectivo é marcada pela inconsistência e a já reconhecida inoperância.
A racionalização do uso do tempo (Sennett, 2001: 26) parece ter como intencionalidade o controlo do imprevisível. Sendo o sagrado «a medida de urgência contra a desordem e o caos» (Pais, 2002: 52), que procura regular e controlar, a sacralização do tempo, por oposição ao profano, é talvez reveladora da ansiedade em gerir novas configurações decorrentes da transformação das sociedades contemporâneas e que se revelam igualmente em espaço escolar.
O tempo, enquanto realidade experiencial e subjectiva, se tem ele próprio uma natureza imprevisível deixa-nos à adivinhação o que no futuro desta matéria se espera. 

(1) Claro que aqui estamos a falar do tempo do ponto de vista dos/as adultos/as e de alguma forma do tempo institucional, do tempo artificial (Mannoni, 2002: 33). O tempo institucional e a recriação desse tempo por adultos, professores e professoras é diferente da recriação realizada pelos alunos e alunas, principalmente porque são simultaneamente jovens figura que também vive do tempo livre e em registo de transitoriedade. 

Referências Bibliográficas

Mannoni, Pierre (2002) «Souffrance Dite, Souffrance Tue. L'école où l'on souffre, lécole dont on souffre». In Jean-Oierre Pourtois ; Nicole Mosconi, (Dir.) Plaisir, Souffrance, Indiférence en Éducation. Paris : PUF. Pp.29-43.
Pais, José Machado (2002) Sociologia da Vida Quotidiana. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Sennett, Richard (2001) A Corrosão do Carácter: As Consequências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Lisboa: Terramar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Sofia Marques da Silva
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Membro efectivo do Centro de Investigação e Intervenção Educativas.
Sofia Marques da Silva
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Membro efectivo do Centro de Investigação e Intervenção Educativas.

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