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Venho simplesmente dizer
"Venho simplesmente dizer", como o disse Natália Correia, "Que uma laranja é uma laranja. E comove saber que não é ave". E mais. "(...) se o fosse não seriam ambas // uma só coisa volátil e doce // de que a ave é o impulso de partir // e a laranja o instinto de ficar (...)  ".
Como é bom relê-la, nestes tempos frios e de chuva, no canto da louca da casa. "(...) À maternidade da pedra //  restituo a casa a levante // e o teu sorriso é navegável // sem rápidos de ciúme e sangue (...)"
Também eu gostaria de me biografar em desenhos, à pena, "com a tinta da estrela polar", desfolhando recortes de jornais velhos que tivessem ganho a cor tépida das estampas antigas.
"(...) respiram os móveis // um sossego de folhas de eucalipto".
"Venho simplesmente dizer", lembrando Natália, por exemplo quando cantada por José Mário Branco, que já nem lírios nem canivetes. Nem alma para ir à escola, nem honras de manequim, embora os nossos fantasmas continuem a ser ainda mais politicamente correctos e tão educados que já nem precisamos dos ombros deles para morrermos.
Este espaço ? recordo ? é apenas o pagamento de uma dívida à poesia. Ao rigor da palavra poética, à incomodidade.
Paro para reler Joaquim Namorado ? Incomodidade. Como Álvaro de Campos também "pertenço a um género de portugueses que depois de estar a Índia descoberta ficaram sem trabalho".
Venho simplesmente dizer que o único óbvio existente reside na poesia, como nesse "Ultraje ao Pudor", do próprio Joaquim Namorado. "As mãos dos escultores te modelaram // nua // os pintores te pintaram // nua // os poetas te cantaram // nua // e os homens te amaram simplesmente // nua? // // Mas Satanás vestiu-te // e lá tinha as suas razões?"
Agora, sem trabalho, com mais tempo, tenho a possibilidade de ler mais poesia e de me reter na minúcia e na sonoridade das palavras com que os poetas nos desvendam um imenso tantas vezes por identificar, ao nível do subconsciente. Que espaço é este que "a Página" desperdiça, todos os meses? Não é recorte de cor tépida, nem sépia. É apenas um pretexto para outro texto, que gostaria cada vez mais solto, mais louco? Poderia talvez ter escrito sobre a envolvente entrevista, do passado dia 23 de Novembro, da Judite de Sousa ao Rui Veloso? E também seria um espaço de poesia? Mas não escrevi. 
Venho simplesmente dizer que talvez tente outras rimas, no ano que vem.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

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