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O goleiro Tomás: corporeidade e conhecimento na escola

Não são raras as constatações de que alguns alunos considerados fracassados pela escola apresentam-se extremamente habilidosos na execução de atividades que requeiram outros saberes que não os restritos aos conteúdos escolares. Neste artigo, busco alguns argumentos que possam complexificar nossa compreensão acerca do que entendemos como conhecimento escolar, recorrendo à discussão da corporeidade como contraponto.
Revirando a memória retorno à década de 80 e detenho-me na imagem de Tomás. Na época, um aluno da 5ª série do ensino fundamental de uma escola estadual do Rio de Janeiro. Tomás morava em um orfanato e era considerado pela escola um caso perdido, tanto por sua história de vida, quanto por suas notas baixas. No entanto, quando desenvolvíamos atividades, durante as aulas de Educação Física que requeriam a atuação de um goleiro, Tomás se transformava, apesar de sua pequena estatura, de seu corpo franzino e de sua timidez. Crescia frente à baliza, parecia voar na tentativa de agarrar a bola. Ao contrário do que acontecia na sala de aula, Tomás era sempre o primeiro a ser escolhido por todos. Além disso, como todo bom goleiro, orientava seu time na marcação, na defesa e no ataque. A timidez e o fracasso desapareciam e davam lugar a um sujeito perspicaz, inteligente e cheio de conhecimentos, que se mantinham invisíveis nas demais disciplinas do currículo escolar.
Como compreender o fracasso escolar e ao mesmo tempo o sucesso de Tomás?
Se compreendemos o sujeito, na expressão de Damásio (1996), como uma ?mente incorporada?, o conhecimento, por conseguinte constitui um processo singular e um devir (VON FOERSTER;1996), e todas as experiências do sujeito estão necessariamente envolvidas neste devir.
A história de Tomás nos ajuda a entender que não existe um corpo que age a partir de uma mente que pensa e comanda, como preconizava Descartes, mas um ser que, na aventura de viver, cria-se e recria-se permanentemente, expressando de diversas formas sua singularidade, construída a partir de suas inserções bio-sócio-culturais na realidade. Por isso, pode-se falar em um organismo auto-eco-organizador (MORIN,1991).
Tomás possui um alto grau de conhecimento que, no momento, está sendo expresso através de sua corporeidade. Isso lhe basta? Evidentemente que não. Muitas informações, experiências, relações, ações, reflexões precisam compor seu arcabouço cotidiano para que seu conhecimento possa se ampliar. É necessário, no entanto que, como professores, possamos enxergar além do esquadrinhamento a partir do qual fomos moldados desde a modernidade.
A aparência franzina e frágil de Tomás, num determinado espaço, aparece como forte, grande, tornando-se  um outro. O que pode mudar se dermos visibilidade ao que estava invisível, ou seja, ao forte Tomás? Por exemplo, o trato e a valorização da diversidade de formas de expressão do conhecimento, permitindo maior diálogo, curiosidade, interesse e valorização do sujeito. Para a escola, um grande avanço com a  incorporação de novas compreensões de como o ser humano aprende, como desenvolve seu processo de ampliação permanente de conhecimento, para Tomás, uma imensa oportunidade de tornar-se um ser humano melhor, com possibilidades e formas de ampliação de conhecimentos respeitadas e potencializadas. Seria garantido a Tomás, espaço tempo para construir e reconstruir sua história na luta incessante de viver e compreender o mundo.

Referências bibliográficas

  • DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1991.
  • VON FOERSTER, H. ?Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem?. In: SCHNITMAN, D. F. Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 161
Ano 15, Novembro 2006

Autoria:

Amparo V. Cupolillo
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ e Universidade Federal Fluminense,UFF
Amparo V. Cupolillo
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ e Universidade Federal Fluminense,UFF

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