Quando deparou com os 21 alunos do 10º ano do curso tecnológico, o grupo de professores habituado a aceitar inimagináveis desafios acreditou estar noutra dimensão do universo: entrar na sala aos gritos e a correr, falar forte continuadamente, não responder às solicitações do professor estranhando as propostas de trabalho, discutir com os colegas às vezes por nada e manter uma espécie de apatia com o ambiente entre telemóveis e MP3 eram atitudes constantes. No entanto, não traziam em si qualquer agressividade em relação à aula. Vindos de várias escolas onde nunca tinham tido espaço nem tempo, aliciados pela especificidade do curso, aqueles jovens de 16 a 20 anos transportavam ainda em si a pobreza económica e cultural perante a qual a Escola foi, de um modo geral, extremamente intolerante. Houve dois caminhos: a) optar de forma inflexível pela missão de promover aprendizagens determinadas por currículos de cargas horárias excessivas e com programas cuja tão alvitrada execução justifica quer o não investir em mais nada, quer o próprio não cumprimento; b) escolher caminhos sinuosos de aproximação aos alunos para que se pudesse compreender os respectivos mundos, criar empatias e, a partir daí, saber seleccionar o essencial e avançar lentamente. Na primeira situação, os alunos reprovaram com notas de 4 e 5; muitos acabaram por abandonar o curso ou a escola; os professores justificaram em acta de Conselho de Turma os níveis de insucesso, mas não conseguiram fundamentar muito bem perante si mesmos o que se passou; apanharam fortes depressões e alguns até desistiram da profissão. No segundo caso, cada unidade programática sofreu uma operação de ?remodelação facial?, atenuando a aprendizagem de determinados conceitos, investindo sobretudo nas relações humanas e na invenção de estratégias. As notas, positivas, chegaram a atingir 16; os professores cansaram-se, arranjaram doenças cardíacas e suas congéneres; mas não ficaram deprimidos e alguns alunos chegaram ao final do curso. Uns professores não eram melhores do que outros, note-se. Tudo é extremamente relativo. Até o sucesso escolar. Os primeiros optaram estritamente pelos parâmetros do conceito que nos vem já do séc. XIX: uma escola cuja missão é promover aprendizagens académicas. Os segundos inscreveram-se nas torrentes que foram ?enchendo? o conceito ao longo do séc. XX: a capacidade de ?tentar resolver? todos os problemas familiares e sociais, como a violência doméstica, as carências alimentares, a educação sexual, a toxicodependência e outros. Como conciliar as duas tendências? Nos últimos 30 anos, parece nunca terem sido bem definidas as prioridades da escola. Exige-se uma profunda reflexão sobre o que ela pode ser e se existe ou não conforme a concebemos. Se se optar por voltar ao passado, anacronismo que não defendemos e parece de todo impossível, então retire-se a maior parte dos alunos, acabe-se com a massificação e não se pense sequer em igualdade de oportunidades. É uma opção. Se se continuar a pedir-lhe todas as responsabilidades pelos males da sociedade querendo arquitectá-la ?a tempo inteiro?, então há que apetrechá-la com equipas multidisciplinares e apoios à gestão em termos de liderança profissional e pedagógica. Concebendo a escola como local de guarda de crianças durante uma semana inteira e exigindo ?aprendizagens capazes? sem que para tal haja condições, a sociedade e os seus governantes podem incorrer em dois erros: 1 - Fazer dos homens de amanhã crianças que não brincaram e que quase não tiveram uma família, com tudo o que isso implica. (Não seria preferível, em vez de mais tempo nas escolas e nas indústrias dos ATLs e das explicações, investir em tempos de saída mais cedo dos empregos, para que os pais possam estar com os filhos?) 2 - Esquecer as grandes opções da sociedade contemporânea: novos domínios científicos - investigação; intersecção de saberes - interdisciplinaridade; e trabalho artístico - criatividade e imaginação (Quantos cursos universitários dão hoje ?direito? a uma profissão nessa mesma área?) Os desafios deste século XXI implicam bom senso e bom gosto. Criem-se discursos renovados que conduzam os jovens ao sentido da responsabilidade e à necessidade de contribuírem para a sociedade que partilham; sem lhes dar mais disto e daquilo: mais Música, Teatro, Pintura (que têm tão pouco no que diz respeito às expressões); mas entrosando os processos de aprendizagem: descobrindo a língua portuguesa na música, esta na matemática, as ciências na plástica? E brincar! Deixem brincar as crianças deste país, para elas poderem aprender! Há lugar para todos: professores, técnicos, funcionários, pais, alunos e tantos saberes. Há só caminhos e opções por descobrir e para inventar. Que a Escola, essa já não existe. Falta só saber se queremos chamar ao que agora temos Contentor ou Berço? da Sociedade, claro!
|