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Quando o futuro intersecta o presente

Há dias, ao iniciar as aulas, observei atentamente os meus alunos, naqueles raros momentos de serenidade interior em que, como num filme, a câmara que existe em nós, efectua um travelling sob todos aqueles rostos ainda anónimos. Nesse preciso instante, em que, do lado de lá, ninguém se apercebera do que estava pensando, dei conta de como o tempo não é linear. Os sociólogos, pelo menos desde Merton, falam de socialização por antecipação para caracterizar uma espécie de colonização do presente pelo futuro. Em termos mais simples, ocorreu-me a aguda percepção de que as expectativas daqueles jovens face ao futuro próximo moldam indelevelmente a sua actuação no momento presente. Eles comportam-se já de acordo com o futuro provável que os espera. Muitos deles, de facto, irão experimentar períodos e situações de enorme instabilidade, com uma entrada diferida no mercado de trabalho e a marca dos estatutos precários e intermitentes. Quantos deles, aliás, não trabalham já em call centers, em trabalhos a tempo parcial mal remunerados e altamente desqualificados e desqualificantes? A passagem pela Universidade já não é, com a excepção de uns happy few, a antecâmara da realização profissional, da autonomia e da criatividade. Boa parte entre eles dilata a sua adolescência por mais uns anos, prolongando uma dependência, doce ou dolorosa, face aos progenitores, adiando a casa própria e a busca de projectos afectivos estáveis. Predomina, assim, a informalização das relações, a busca permanente, a experimentação de empregos, de estados de espírito e projectos. Alguns adaptam-se de forma feliz, transformando a sua vida em conhecimento dos outros, da sua diversidade e diferença, em activismo ou militância numa redescoberta, em novos moldes, da política. Outros, no entanto, vivem em desistência ou ansiedade, numa espécie de individualismo negativo que é sinónimo de apatia, alienação e consumismo fácil.
Os efeitos do futuro no presente observam-se na sala de aula e nas atitudes face à aprendizagem. Não raras vezes dissemina-se um sentimento de desconfiança face a tudo o que é supostamente «teórico», como se a prática fosse um momento desligado da teoria, como se a prática não fosse a teoria em acção, como se a teoria remetesse para uma metafísica de nenúfares celestes. Outras vezes, mais frequentes, a postura instrumental toma conta de mentes e corpos. Calcula-se uma nota a atingir e doseia-se o esforço intelectual. Acontece, ainda, o desinteresse generalizado por tudo o que desafie a preguiça instalada, ora em tom de desafio, ora em puro desespero de vencido.
O professor depara-se, então, com uma opção muito clara: torna-se, ele próprio, um agente do cinismo instalado ou revolve o lodo sem hesitação. Ao fazê-lo, ficará sempre a dúvida se vale a pena e se, por perverso efeito, não criará nos alunos ilusões e desejos que a vida assassinará um a um. Cabe-lhe, é certo, absorver a ansiedade discente; fomentar o pensamento crítico e divergente; inovar nas práticas pedagógicas; dessacralizar a avaliação; combater o espírito de casta do ensino superior. Mas o futuro paira, em revoadas sucessivas, nestes dias pardos em que apetece escrever assim. Em dias assim, só resta fazer o que Chico Buarque aconselha: aja duas vezes antes de pensar. Olhar os alunos, sorrir-lhes sem fraquejar e desejar-lhes, com entusiasmo, um bom ano, contra todas as expectativas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

João Teixeira Lopes
Deputado do Bloco de Esquerda; Sociólogo. Univ. do Porto.
João Teixeira Lopes
Deputado do Bloco de Esquerda; Sociólogo. Univ. do Porto.

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