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O calcanhar das celebridades

É conhecida aquela narrativa da mitologia grega segundo a qual Aquiles,  o famoso herói  da guerra de Tróia, foi atingido  por uma flecha de Páris no calcanhar,  o único ponto  do seu corpo que escapara no banho da imortalidade em que o mergulhara  sua mãe, Tétis,  a deusa do mar.
Esta saga pode lembrar  que as fragilidades humanas são tanto mais visíveis quanto maior for a notoriedade dos heróis ou das figuras públicas que o senso geral elevou ao patamar da celebridade.     Muitos se lembrarão de Zidane, o ?herói? do futebol francês que, por não resguardar o  ?calcanhar? temperamental, maculou a glória do seu talento futebolístico vibrando  uma ostensiva cabeçada no peito de um adversário, para desgosto dos inúmeros admiradores disseminados pelo mundo.
Sentimento semelhante terão experimentado  os leitores portugueses (sobretudo aqueles de quem ele se sente querido) de uma crítica feita a José Saramago, na ?Página? de  Julho,  pelo confrade brasileiro  Urariano Mota, com o seu artigo intitulado ?Por que os velhos se tornam reaccionários??, em que verbera as declarações do nosso Nobel  a propósito do Plano Nacional de Leitura que a  Ministra da Cultura pretende implementar para combater a iliteracia nacional. E cita as frases que o chocaram porque ?misturando o resmungo ao óbvio, o natural ao artifício, o lógico ao absurdo (...) estavam prontas para os títulos da imprensa?. Tais como:
?Não vale a pena o voluntarismo, é inútil, ler sempre foi e será coisa de uma minoria. ? Não vamos exigir a todo o mundo a paixão pela leitura.- O estímulo à leitura é uma coisa estranha, não deveria ter que haver outro estímulo além da necessidade de um instrumento que permita conhecer.-  Ninguém precisa de estímulos para se entusiasmar com o futebol.?               
Ninguém  esperaria de um  Prémio Nobel da Literatura opinião tão perturbadora  na oportunidade em que foi pronunciada quanto bombástica pelos  previsíveis efeitos. E do homem José Saramago muito menos, sabendo-se que ele próprio, nascido de uma família humilde e iletrada, fizera as suas primeiras leituras, fora dos livros escolares, nas bibliotecas públicas.
Outras opiniões perfunctórias, mas capazes de ferir  o senso comum e aquele orgulho patriótico que é dos povos uma reserva de identidade  nacional e, desta, a última qualidade a morrer,  foram significativamente silenciadas ou não comentadas pelos ?media? que, no dizer do confrade brasileiro, ?buscam o excêntrico, o sensacional, a todo e qualquer custo?.
E não tinha  Urariano Mota lido a extensa ?Carta Aberta? que José Saramago, no ?Jornal de Letras? de 4 de Junho, escreveu ?Ao Exmo. Sr. José Maria Eça de Queiroz?, questionando as motivações que levaram o autor do ?Suave Milagre? a não se ficar apenas por uma versão do conhecido conto. Mas, mais intrigante do que questionar a imagética  do ficcionista, deduzir que com a terna chave-de-oiro da história ? a pobre criancinha doente que queria ver Jesus e a quem Jesus milagrosamente apareceu após a saída do mendigo viajante (Steiner regista, na sua ?Errata?, a simbologia recorrente nas lendas da Bíblia e na mitologia grega da figura do viajante que ao sol-posto bate à porta) ? Eça de Queiroz significou a própria mágoa  de, enquanto criança, ter sido entregue a uma ama desde que saíra sigilosamente de um  ventre fidalgo e o desejo ardente de  que a mãe ?anónima? lhe aparecesse, por milagre...
Por  respeito ou condescendência pelo escritor português galardoado com a mais internacional das distinções, raros  comentadores, e alguns que Saramago terá incluído na ?matilha de sabujos que anda a ladrar-me às canelas e a morder quando pode?, não resistiram a criticar outras afirmações polémicas, como aquela que coincide com a que, sobre a mesma questão da integração pacífica de Portugal na Espanha, o filósofo José Gil fez numa entrevista ao ?JL? de Janeiro passado. Saramago remata: ?Especulo, porque pessoalmente não estou a favor nem contra, mas digo-vos que até poderia ocorrer que, como Estado federado ao lado de Espanha, o país adquirisse uma importância que agora não tem.? Hegel e Marx não precisariam de melhor prova da existência de uma forma consentida de ?alienação?...
Saramago tem ?especulado? algumas vezes (outro exemplo: ?Do 25 de Abril nada resta.?), mas, quanto à inutilidade  de o Estado fazer tudo quanto for possível para incutir  a necessidade da leitura na ?maioria? dos portugueses,  que cada vez mais desaprendem de escrever, falar e pensar ?em português?, já não cabe no domínio da especulação. Que o digam os confrades que, na Fundação Calouste Gulbenkian, inspiraram ou promoveram a criação de mais de duas centenas de bibliotecas fixas e itinerantes que, durante algumas décadas,  registaram  cerca de 60 milhões de leituras,  abrangendo os lugares mais interiores do país.  E que dizer do interesse que, há pouco mais de cinquenta anos, o povo alfabetizado manifestava pela chamada literatura de cordel ? como hoje ainda se verifica em algumas regiões do Brasil?
É verdade que nem um intelectual galardoado com o Prémio Nobel da Literatura se obriga a ser tão rigoroso em psicologia,  história ou  sociologia, ou em qualquer outra  área do conhecimento, como é  em literatura. Mas se não controla o impulso da ?sinceridade?, da qual Saramago  se reclama por exigência do seu ego (di-lo nos ?cadernos de Lanzarote?,  leitura  indispensável para se conhecer o homem Saramago), poderá ter de aferir o que já escreveu em 3 de Junho de 1993, no seu ?diário? escrito na ilha onde também vive agora e  efabulou, separada da Europa,  a Península Ibérica como uma  sólida e una  ?jangada de pedra? vogando (às urtigas o  Tratado de Tordesilhas e a anexação de Olivença...)  entre a África e a América Latina,  para perturbação do  presidente da América do Norte, que não se importaria se a ?jangada?  fosse parar na Antárctida:
?Como também vai sendo costume, foi muito louvada a minha sinceridade [num colóquio na Universidade Nova], mas, creio que pela primeira vez, esta insistência e esta unanimidade fizeram-me pensar se realmente existirá isso a que damos o nome de sinceridade, se a sinceridade não será apenas a última das máscaras que usamos, e, justamente por última ser, aquela que afinal mais esconde.?


  
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Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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