Fervilhante de vida e visceralmente atravessada pelos dramas, crises, medos, sonhos, perplexidades e desafios que marcam o devir humano neste tempo difícil, a cidade funciona como o grande referencial cívico da sociedade. Desde a antiguidade clássica que a cidade nos é apresentada como um lugar de acolhimento e de hospitalidade por excelência. A «familiaridade com o estranho», com o forasteiro, o peregrino e o desconhecido, constitui mesmo um traço definidor da urbanidade. Mas até que ponto isso continua a ser verdade? Em que medida as cidades do nosso tempo constituem referenciais civilizadores e emancipadores? Podemos continuar a falar das cidades como lugares privilegiados para a experiência de relação com a alteridade humana? A cultura da diferença, enquanto valor de urbanidade, não será também uma cultura da indiferença? Que é feito dos tradicionais espaços públicos vocacionados para o convívio humano, para a relação recíproca e para a participação cívica? E, concretamente, em que medida estas interrogações atravessam a razão pedagógica? Considerando as estratégias de vida do mundo contemporâneo, verificamos que, cada vez mais, a relação com o semelhante e o parecido ganha prioridade sobre a relação com o diferente numa cidade deserta de espaços e tempos comuns e povoada por múltiplos enclaves comunitários, diferenciados e indiferentes entre si. Em muitos casos, estes enclaves resultam de uma escolha feita por cidadãos com poder efectivo para exercer o seu direito de cidadania. Mas, infelizmente, em muitos outros casos as coisas não se passam assim. Nos bairros degradados a existência tem o gosto amargo de uma trágica privação de sentido e de total ausência de escolhas. O escândalo da distância que separa estas duas faces de uma mesma realidade pode levar-nos a acreditar na ilusão de uma fractura social bem delimitada, visível e controlável. O que não corresponde à verdade. Mais do que a separação entre o mundo dos ricos e o mundo dos pobres está em causa uma generalizada e impiedosa indiferença em relação ao próximo, cruelmente espelhada na ruptura de laços que fere de morte o tecido social no seu todo. Arrisco dizer que é o próprio sentido do humano, com toda a sua força utópica, que assim fica ameaçado. Antecipando-se com notável clarividência aos acontecimentos que ensombraram a sociedade francesa em Novembro de 2005, Éric Maurin põe justamente o dedo nesta ferida chamando a atenção para a dramaturgia da segregação urbana que, ao contrário do que possa parecer, não é redutível a um incêndio repentino e local. Na sua opinião, as diferentes formas de segregação e separatismo social correspondem a um fenómeno durável e silencioso que afecta todos os grupos sociais, sem excepção (2004). Ou seja, a resposta a este problema humano exige uma atenção prioritária aos sujeitos da exclusão, mas sem nunca deixar de ter em referência o conjunto da sociedade, a forma como conduzimos os nossos destinos e identidades, como nos relacionamos com os outros e, de um modo geral, com o mundo. Neste sentido, importa que os valores tradicionais da cidadania sejam actualizados num quadro de exigência humana próprio da sociedade do século XXI, desejavelmente cosmopolita e solidária. Ora, a educação desempenha aqui um papel relevantíssimo, na escola e fora da escola. Recordo a este propósito o lúcido apelo feito por António Nóvoa na Assembleia da República por ocasião da abertura do Debate Nacional sobre Educação, «à escola o que é da escola, à sociedade o que é da sociedade». Assim, sem deixar de ter em conta a distinção de campos mas também os múltiplos espaços de intersecção que são possíveis entre uma praxis escolar e uma praxis social, inscrevo a minha preocupação no universo científico da chamada «pedagogia social», um espaço de investigação e de acção com inegável pertinência e sentido mas ainda emergente, sobretudo no nosso país. Em textos posteriores, procurarei evidenciar as possibilidades pedagógicas que podem ser geradas ao nível da acção sócio-educativa, acreditando que o esforço em causa pede, naturalmente, uma estratégia política global e concertada, apoiada no compromisso social de cada cidade e de cada comunidade.
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