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"Eu hei-de amar os professores"

Curioso, os assassinos do Estado são os que mais vive(ra)m dele.

?Anda um espectro por Portugal ? o espectro da docentofobia ? todos os poderes deste nobre povo, nação valente e imortal se aliaram para uma santa caçada à classe docente?, Primeiro ? Ministro, Ministra da Educação, Secretários de Estado da Educação, Ilustres Assessores ? outrora nas trincheiras da oposição e demais Associações que aspiram protagonismo -, Pais e Mães (alguns, esquecem-se, que são docentes), o dito mundo do Mainstream Media, Soldados de Fortuna construída no tecido empresarial à custa do desespero de milhões, franco atiradores alguns deles oriundos das Ciências da Educação e das Ciências da Especialidade, que estrategicamente foram e vão colonizando espaços e tempos na sociedade civil. Abriu mesmo a ?época de caça aos professores e professoras? nesta ditosa pátria que segue seguindo bem madrasta ? como bem bramou o desterrado Jorge de Sena ? para a vastíssima maioria. Subitamente todas estas figuras pictóricas ? algumas delas já perfeitamente identificadas e descritas pelos da Geração de 70 ? conseguiram construir, ao nível do senso comum, a perigosa ?peregrina certeza? da classe docente como a culpada da crise que se vive na educação pública.
Esta estratégia, levada a cabo por aquilo que denomino maquinistas e/ou comissários políticos do ?progresso da decadência?, os Poirot da Pedagogia ? a direita vai fruindo a sua monárquica sabática com estes partido e governo socialistas ? esconde uma outra, um intencional e progressivo desinvestimento do Estado na educação pública, desinvestimento camuflado nas mais recentes panaceias de choques e bandas tecnológicas ?para ricos e pobres? e apoiado num quadro amplo de pastorais que vão estrumando cirurgicamente o senso comum. De entre essas pastorais, caiu já em lugar comum, por exemplo, a tensão ?público vs. privado? em que tudo o que é público é, por definição mau e, por oposição, tudo o que privado é bom. Até parece que não é a mesma classe docente ? que calcorreou a mesma formação, inicial e contínua -, que actua nos dois lados; inclusive nos três, já quase me esquecia, do tal que é ?público ao abrigo da concordata?. Curioso, os assassinos do Estado são os que mais vive(ra)m dele.
A Ministra da Educação ? contrariamente a Santana Castilho, eu nem a admitia a exame ? (e restantes comissários) tem mesmo pouco ou nenhum perdão ao embarcar nesta cruzada contra a classe docente, ela que mergulhou na Sociologia das Profissões e que teima em não querer compreender que é com esta classe docente que tem de trabalhar, que não consegue compreender que a docência é, acima de tudo, um compromisso político, que não se consegue afirmar como uma ?fundadora de discursos e de práticas? ? alguém que transpire luz própria -, mas sim ?produtora? de quadros estafados, exemplo vivo de uma atroz infertilidade de originalidade nas ideias, esquece-se que histórias como as da Opel da Azambuja não são hipérboles, que o verdadeiro debate em torno dos conteúdos curriculares continua por se fazer, que uma das grandes questões é a edificação de uma escolarização livre de manuais escolares, que o novo modelo de gestão escolar ? nas suas sucessivas versões ? foi sempre um romance que a classe docente viveu sem amor -, que, como os outros, estatela-se em reformas de forma, hipotecando a dos conteúdos, esquece-se que grande parte da história da mãe pátria (para uns) bem madrasta (para a esmagadora maioria) aconteceu fora de Portugal, esquece-se que o trabalho docente é um trabalho ?genderizado? e que o feminino docente não existe numa qualquer nefelibática bolha social, esquece-se, pasme-se, como socióloga, que a educação é atravessada por dinâmicas ideológicas, culturais, políticas que se ?esfregam? em categorias como raça, classe, género, e, por isso, obriga a análises relacionais, ignora que, no fundo, ? no passado, tal como ela o agora impõe ? a classe docente foi sempre vista como ?correia de transmissão? dos fluxos determinados pelo Ministério da Educação. Este governo socialista ? que habilmente vai confundindo ?voto da maioria com o voto de todos?, claro exemplo daquilo que Slavoj Zizek (1) denomina ?curto-circuito da democracia?, - não lançou nenhum repto à escolarização pública. Bem pelo contrário, lançou um rapto desenfreado, atacando, sem mestria, diga-se, a classe docente, como se fosse esta a culpada dos grandes males da escolarização pública.
Este ódio, (tenho a viva esperança que um dia compreenderá(ão) como conseguir amar os professores) habilmente fabricado em torno da classe docente impede, entre outras questões, que a escolarização pública crie espaço e tempo ? sobretudo pelos conteúdos ? ?para compreendermos um passado que foi mal embalado e que nos chega deformado, um presente que vem vestido de roupa emprestada e um futuro que nos chega encomendado por interesses que nos são alheios?. Está neste repto de Mia Couto (2) o grande desafio à escolarização pública em Portugal.

Notas:

  1.  Zizek, Slavoj (2005) O Waterloo Liberal ? ou Finalmente Algumas Boas Notícias Vindas de Washington. Manifesto ? Práticas, Direitos, Poderes, nº 27, pp., 96-100.
  2. Couto, Mia (2005) Pensatempos. Lisboa: Caminho.

  
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Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

João Paraskeva
Universidade do Minho
João Paraskeva
Universidade do Minho

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