Estudo internacional revela existir forte correlação entre fraude académica e níveis de corrupção
Aurora Teixeira, Professora da FEUP, em entrevista à PÁGINA
Aurora Teixeira é Mestre em Economia pela Faculdade de Economia do Porto (FEP), com o Prémio do Conselho Económico e Social, e Doutorada em ?Science and Technology Policy Technology and Innovation Management? pelo SPRU - Science and Technology Policy Research, da Universidade de Sussex, Reino Unido. É docente da FEP desde 1994 nas áreas de Macroeconomia, Mudança Estrutural e Inovação, Gestão da Inovação, e Projecto de Inovação e Tecnologia (Mestrado em Inovação e Empreendedorismo Tecnológico, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. É também editora dos ?Working Papers? e Coordenadora do Programa de Seminários da FEP. Autora de várias publicações em temas de capital humano e inovação, incluindo os livros ?Capital Humano e Capacidade de Inovação. Contributos para o estudo do crescimento Económico Português, 1960-1991? (Conselho Económico e Social, 1999), ?Multinationals, Clusters and Innovation: Does Public Policy Matter??, (com Ana Tavares, Palgrave Macmillan, 2006) e artigos em revistas científicas internacionais e nacionais. Colaborou em diversos estudos, como o PRASD - Programa de Recuperação de Áreas e Sectores Deprimidos (Ministério da Economia, 2003) e A Dinâmica do Emprego na Região do Norte (CCDRN, 1999). Em Março deste ano ganhou (com Ana Tavares), o Prémio Foreign Direct Investment ? API/Universidade de Coimbra, com o estudo ?Foreign Direct Investment, Human Capital and Technology: an Application to the Portuguese Case, with a Policy-Making Focus?. Está actualmente envolvida na elaboração dos livros ?Education, Competitiveness and Technological Performance: An Evolutionary-Ecological Approach to Human Capital Formation? (a publicar pela Edward Elgar Publishing Ltd), e (com Maria de Fátima Rocha) ?Determinantes dos comportamentos da fraude académica no ensino superior intra e inter países?. É precisamente em torno deste estudo internacional (que constitui a base da tese de doutoramento em Economia da co-autora, Maria de Fátima Rocha) que entrevistamos Aurora Teixeira para esta edição de a PÁGINA, divulgando os seus principais resultados e questionando-a sobre a possível interpretação dos dados obtidos. Espaço ainda para determinar até que ponto este é um assunto que preocupa as instituições de ensino superior em Portugal e quais as possíveis soluções a implementar.
Em que contexto surge este estudo?
Este estudo surge a partir de um interesse mais abrangente que tenho vindo a desenvolver no âmbito da minha actividade de investigação, que incide sobre a tentativa de quantificação do stock de capital humano em Portugal medido em função do grau de escolaridade possuído pela população activa. Este tipo de análise, por se basear numa medida quantitativa e dependente do contexto de eficiência do sistema educativo, tem a desvantagem de não ser absolutamente conclusiva, já que esse capital de escolarização não possui necessariamente o mesmo valor acrescentado ao longo dos períodos em análise. Tendo em conta esta questão da qualidade, pensei que seria interessante tentar determinar até que ponto as práticas de fraude académica ? como copiar nos exames ou cometer plágio nos trabalhos de curso ? poderiam ou não estar a sobrestimar esse stock de capital humano. Se tivermos em conta que os indicadores apontam para o acentuar deste fenómeno no meio universitário, isso poderá significar que, apesar de se ter vindo a observar um aumento do grau médio de escolarização da população activa, esse acrescento não significa necessariamente a melhoria da qualidade da formação.
Sei que outra das suas preocupações foi a de tentar estabelecer um paralelo entre as práticas ilícitas no meio académico e a sua transposição para o mercado de trabalho e para o mundo dos negócios, e que por essa razão o estudo incidiu sobre os estudantes da área da Economia e Gestão?
Sim, partindo do pressuposto de que se os estudantes têm práticas menos lícitas ao nível dos estudos, com maior probabilidade poderão cometer actos ilícitos no contexto laboral. No mesmo sentido, estamos também a pensar em realizar um estudo semelhante aplicado à área do Direito, onde a existência de princípios éticos é igualmente determinante na profissão.
Para determinar os resultados deste estudo foi conduzido um questionário junto de vinte e um países um pouco por todo o mundo. Pode contar-nos como decorreu o processo e a qual a metodologia utilizada?
Sim, o método escolhido foi a realização de um inquérito anónimo junto de estudantes de Economia e Gestão do ensino superior de vinte e um países. Nele inquiríamos os participantes sobre se copiavam ou não, a regularidade com que o faziam, se observavam esse comportamento nos colegas, como encaravam essa prática, etc. Seleccionamos 42 instituições de quatro continentes (exceptuando a Ásia) num universo total de 7213 estudantes. Em Portugal o universo compreendeu a totalidade de instituições de ensino superior público. Depois, cruzamos os dados obtidos com o Índice Mundial de Transparência relativo a 2005 ? um ranking elaborado pela agência internacional ?Transparency International? ? associado a cada país participante e comparamos os resultados.
A que conclusões chegou?
Em primeiro lugar, e no que diz respeito aos resultados globais, constatamos que, em média, 61,7 por cento dos alunos universitários admite já ter praticado algum tipo de fraude. Depois, que existe uma forte correlação estatística entre os dois índices, isto é, os países onde os índices de fraude académica são mais elevados são os mesmos onde os índices de corrupção percebida são maiores.
Sei que existem duas excepções?
Sim, a Nigéria e a Argentina, que apareciam no nosso inquérito com resultados discrepantes relativamente aos índices de corrupção dos respectivos países. O caso mais interessante será o da Nigéria, que apresenta resultados da ordem dos 40 por cento no índice de fraude académica mas é um dos países com pior classificação no Índice de Transparência, situado no 152º lugar numa lista de 159. Ainda em 2005, o ?Transparency International? realizou um inquérito nacional inquirindo a população sobre o principal problema associado à economia do país e a resposta foi precisamente a existência de altos níveis de corrupção. Há, nesse sentido, uma grande sensibilização da população para este problema. No caso dos estudantes, e apesar de poderem existir outras razões que possam explicar a assumpção de um baixo índice de fraude académica, 60 por cento considera que ela é um problema muito sério e que merece medidas. A média dos restantes países, para termos um termo de comparação, é de apenas 12 por cento. A Argentina, apesar de em menor grau, aparece igualmente com valores aquém daquilo que seria de esperar em face do seu lugar no ranking do Índice de Transparência.
Apesar de a amostra geográfica deste estudo ser significativa, não teme que, tendo em conta o diminuto número de instituições analisadas em alguns países, os resultados possam estar subdimensionados?
Obviamente que este estudo tem algumas limitações, porque, exceptuando o caso português, onde inquirimos a totalidade das faculdades públicas de Economia e de Gestão e podemos considerá-la uma amostra muito representativa, nos restantes países o número é restrito, pelo que seria necessário aprofundar o estudo para obter uma imagem mais rigorosa. Nós pensamos neste estudo como um primeiro passo, dado que não há análises muito pormenorizadas neste domínio. A nossa esperança é que alguns dos nossos colegas que aceitaram realizar estes inquéritos nos seus países de origem queiram fazer um trabalho semelhante para podermos trocar experiências e fazer uma análise mais detalhada desta questão.
Portugal situado na média
Em termos gerais, quais são os países onde os estudantes mais e menos admitem cometer algum tipo de fraude?
Antes de mais será importante referir que optamos por agregar os resultados disponíveis em blocos geográficos pelo facto de haver poucos dados disponíveis relativamente a alguns países. Em termos de método estatístico esta estratégia ajudou a tornar os resultados mais sólidos. O interessante deste estudo foi verificar que existem diferenças marcantes no que diz respeito à admissão de práticas fraudulentas entre países e blocos de países. De facto, ficou patente, por exemplo, a grande diferença entre os países nórdicos ? representados pela Dinamarca e Suécia ? onde uma média de apenas cinco por cento dos alunos admite alguma vez ter praticado alguma atitude ilícita, e os países do leste europeu ? Polónia, Roménia e Eslovénia ?, com uma média de propensão para a fraude estimada em 87,9 por cento. O bloco de países latino americanos ? onde se incluem a Argentina, o Brasil e a Colômbia ?, do sul da Europa ? Portugal, Espanha, Itália e Turquia ? e da Europa ocidental ? Áustria, França e Alemanha ? possuem médias semelhantes, com respectivamente 67,9%, 66,4% e 65,3% de incidência. Nos Estados Unidos e ilhas britânicas ? Irlanda e Reino Unido ?, cerca de 17 por cento dos estudantes admite ter cometido algum tipo de fraude, valor não muito distante do revelado na Nova Zelândia (20,7%). Tal como há pouco referia, o bloco de países africanos ? Nigéria e Moçambique ? apresentam níveis surpreendentemente baixos, com apenas metade dos estudantes a admitir comportamentos fraudulentos.
E quanto a Portugal, quais foram os resultados?
Se compararmos internacionalmente Portugal situa-se a meio da tabela, com 62,4 por cento dos estudantes universitários portugueses a admitir que já praticou ou pratica regularmente algum tipo de fraude na sua actividade académica. Mas este resultado não deve ser dissociado do facto de ter sido o país com maior número de observações (38,9%), o que, obviamente, condiciona a média. No entanto, se compararmos Portugal com o bloco respeitante ao sul da Europa, o nosso país é um dos que revela menor incidência de fraude académica, muito distante, por exemplo, da Espanha, que apresenta uma média de 79,6 por cento.
Que outros dados significativos podem ser retirados deste estudo?
Julgo que é preocupante observar que para a maioria dos estudantes copiar nos exames é considerado um problema menor. Apenas 12,2 por cento do total considera esta atitude como um ?problema sério? e um terço afirma merecer ?alguma preocupação?. Para 60 por cento, no entanto, este ?não constitui um problema? ou é considerado um ?problema trivial?. Apesar disso, cerca de 40 por cento reconhece que o acto é intencional e apenas 17 por cento admite fazê-lo motivado pelo ?pânico?. Os países onde uma percentagem mais elevada de estudantes identifica o ?copianço? com situações de pânico são em geral aqueles onde a fraude académica é menos expressiva, tais como a Suécia, a Dinamarca, as ilhas britânicas e a Nova Zelândia.
De que forma se distribuem as respostas?
De acordo com as respostas recolhidas nos questionários, nos países nórdicos, tal como esperado, este fenómeno não é percebido como um assunto preocupante, com 80 por cento dos estudantes a considerar que a ocorrência de cópia nos exames não é preocupante ou é um problema menor. Os estudantes da Europa de leste, como a Eslovénia e a Polónia, apesar de revelarem taxas mais preocupantes de fraude académica, não parecem, no entanto, reconhecer esta atitude como um problema, com quase 60 por cento a considerar que ela não merece preocupação ou algum tipo de medida. O mesmo acontece na Áustria, Espanha e Brasil.
Os nórdicos parecem ser, então, os estudantes com maior sentido de ética?
Sim. A atitude dos nórdicos face a esta questão, aliás, ficou bem patente através da recusa de um professor finlandês em participar neste inquérito, argumentando que era inconcebível pensar que no seu país os estudantes podiam ter este tipo de comportamento...
Uma questão de ética
Este tipo de preocupação está presente em outros países?
Sim, em particular nos Estados Unidos, onde existe bastante literatura sobre este tema e onde se desenvolvem bastantes estudos, inclusivamente a nível governamental, sobre o fenómeno. Ainda recentemente, um artigo no jornal ?The New York Times? sugeria precisamente que as fraudes em meio universitário estão em alta devido à pressão a que os estudantes estão sujeitos para aceder ao mercado de trabalho.
Será essa a principal razão?
Penso que sim. A nota final de curso é vista como o principal meio de entrada no mercado de trabalho e isto leva a que, de uma forma directa ou indirecta, as pessoas se sintam tentadas a praticar atitudes menos lícitas. A questão está no facto de que a banalização deste tipo de actos ilícitos, que na maior parte das vezes não são objecto de sanções disciplinares consequentes, faz com que a ideia de permissividade seja interiorizada. E essas práticas são depois, de alguma forma, transportadas para o mundo do trabalho, dos negócios e para as próprias práticas sociais. A fuga aos impostos é disso um exemplo elucidativo.
Será que não passará também pelo facto de os professores avaliarem sobretudo a reprodução do conhecimento em detrimento da construção do saber? Concorda com esta ideia?
Concordo em parte. Existem várias formas de atenuar a prática da fraude académica, e essa pode ser uma delas. Mas, do meu ponto de vista, essa é uma medida que apenas remedeia a situação, porque estamos a admitir que, por norma, o estudante vai prevaricar, quando temos é de impedir que o faça. Se actuarmos mais a montante, na questão da sensibilização e da responsabilização, penso que será mais proveitoso. Mas admito que nem sempre a culpa é dos estudantes, porque existe uma crescente pressão para sermos melhores do que os nossos colegas. Toda a gente quer excelência a todo o custo. E de facto devemos apelar à excelência e ao rigor, mas não a todo o custo.
Na sua opinião, o que é possível fazer?
Se olharmos para as universidades de maior prestígio, por exemplo, vemos que uma das principais preocupações é o estabelecimento de um Código de Honra. Neste estudo que fizemos, o Código de Honra é uma das variáveis mais importantes a influenciar a probabilidade de os estudantes cometerem ou não actos ilícitos. Nos estabelecimentos de ensino onde ele está previsto, a probabilidade de fraude académica é muito inferior.
O que é o Código de Honra?
O código de honra não é apenas um documento legal onde se impõem sanções para os prevaricadores. Isso existe em praticamente qualquer estabelecimento de ensino, onde se prevê, por exemplo, que ao aluno seja anulado o exame no caso de ser surpreendido a copiar e incorrer numa pena de um ano sem poder realizar o exame à respectiva disciplina. Nos estabelecimentos onde existe o código de honra o estudante afirma, sob compromisso de honra, que não irá cometer qualquer tipo de fraude, porque nessa circunstância é o próprio meio que reprime o estudante pela sua atitude, estigmatizando-o e dando-lhe a entender que ele não está a competir em igualdade de circunstâncias com os restantes.
Esta questão desperta o interesse de outros investigadores em Portugal?
Julgo que existem abordagens a este tema mas sobretudo do ponto de vista sociológico. No entanto, muitas vezes estes investigadores não interagem ou divulgam os resultados da sua pesquisa. E habitualmente focam estudos de caso, não havendo tanta preocupação em obter inquéritos mais representativos e recorrer a técnicas estatísticas que possam ajudar a capitalizar os resultados. Na área das ciências, como é o caso da Economia, existe a preocupação de dar mais relevo ao conteúdo estatístico e menos ao sociológico. Nesse sentido, seria interessante reunir sinergias.
Partindo da sua experiência, sente que existe preocupação por parte das instituições universitárias no sentido de travar este tipo de práticas?
A nível internacional a preocupação é mais evidente e as tentativas para a atenuação e resolução do problema sistemáticas. Por exemplo, nos EUA, Inglaterra e França existem já grupos de estudo reunindo várias universidades e instituições governamentais que tentam reflectir sobre os fenómenos de fraude na academia e propor medidas pragmáticas conducentes à sua erradicação ? entre outras medidas podemos destacar a criação da figura de provedor do aluno, o qual à entrada deste na instituição de ensino procura esclarecer e sensibilizar o estudante para os seus direitos e deveres e a conduta ética que a instituição exige e espera do mesmo; difusão e implementação de ?códigos de honra? e outros documentos relacionados com condutas éticas no ensino superior. Em Portugal, por se achar (dentro e fora do sistema de ensino) que a fraude é um problema menor e inconsequente, tais movimentos são inexistentes.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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