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Especialização de toda espécie

Vivemos numa era de especialização. Todos os especialistas da especialização dizem-nos que quem não se especializa não é empregável. A produtividade é associada à especialização.
Em domínios bem específicos, ilustra-se como especialização as pós-graduações. Especialização corresponde a procurar saber cada vez mais acerca de uma área bem limitada do saber.
Seria redutor considerar que o que é verdade para a investigação de ponta, seja verdade para toda a actividade humana. Há actividades onde afunilar saber ou saber-fazer significa perca de qualificação da mão-de-obra. Nalguns casos, o generalista com capacidade de análise de um quadro geral é o ?especialista? indicado. Na clínica geral, por exemplo. Ter a capacidade de abordar assuntos transversalmente e de forma integrada é com certeza uma especialização complexa.
Para trabalhar com as crianças que estão na escola primária ? em Portugal reduzida a 4 anos de escola de primeiro ciclo ? recorre-se, na maioria dos países europeus, a especialistas-generalistas, em muitas línguas com designação específica, diferente do genérico ?professor? português.  São pessoas que continuam o trabalho dos educadores de jardim de infância. Profissionais que relacionam os saberes e as impressões de cada criança do grupo com quem trabalham com os saberes colectivos. Conhecem de cada um as suas capacidades e fraquezas, e quando estão bem preparados, desenvolvem com este saber, acerca de cada indivíduo e do grupo, as estratégias que consideram mais eficazes no processo de ensino-aprendizagem.
Estes especialistas-generalistas da escola primária precisam de instrumentos maleáveis. Não um laboratório, mas um kit simples. Não uma sala de informática, mas um bom computador (ou dois) em cada sala. Não uma sala de artes, mas boas tintas e bom papel em cada sala. Não uma imitação de saber académico em formato infantil reeditado de 4 em 4 anos, mas histórias, problemas, bases de exercício, adaptáveis às vivências do grupo com quem trabalham. Não um espaço para praticar futebol, estranhamente identificado como polidesportivo, mas um conjunto de materiais de educação física que permitem criar circuitos de treino, propor jogos com diferentes tipos de bolas. Não um horário orientado por disciplina, mas por tempos de trabalho que possibilitam desenvolver raciocínios e fixar saberes, transversalmente. São estes alguns exemplos entre muitos.
Procuram estes materiais ou instrumentos não porque lhes apetece, mas porque os programas da escola primária assim o pedem, cada vez mais em uníssono, na Europa uniformizada.
Estranhamente, entre nós, muitos que escolhem a profissão, não são formados para o fazer. Futuros professores, vindos da Holanda ou da Flandres, estudantes ?Comenius?, em Escolas Superiores de Educação portuguesas, acabam por passar pela minha sala, à procura de quem fala a mesma língua que eles, questionam-me. Dizem-me que na escola-anfitriã , encontram demasiadas vezes docentes especialistas, cada um para a sua área. Percebo que há, entre estes especialistas, quem acredite que especializa os seus alunos quando transmite o que considera a essência do que sabe, formando especialistas de 2ª categoria.
Há um raciocínio implícito que a soma de muitas especializações menores resulta numa formação de especialista-generalista, por milagre, numa linha de montagem académica virtual.
Infelizmente, há quem passou por este tipo de formação e descobre que é especialista absoluto do nada. Descobre-o dolorosamente, no primeiro contacto desanimador com o contexto real de trabalho. Quando foi ainda por cima convencido que é especialista-generalista, o embate é demolidor.
A resposta ao problema parece ter chegado a Portugal. Diminui-se administrativamente o conteúdo curricular. Inventa-se uma designação burocrata de ensino das letras, das contas e do estudo do meio. Eis o trabalho do professor. Com o dinheiro público, que poderia servir para apetrechar as turmas da escola pública, compram-se produtos de animação artística e desportiva, acrescentados de tempos de estudo fora do tempo de estudo.
Provavelmente trata-se de uma estratégia para estimular o mercado, aumentar o consumo de produtos industriais, mobilizar as melhoras ofertas criativas. Permite, com um toque de varinha de condão, transformar pseudo-generalistas em pseudo-especialistas por disciplina. Permite fragmentar a atenção do adulto por mais turmas e grupos. E evita o trabalho prolongado e reflectido na cidadania, com crianças pequenas. É certamente mais racional, porque evita repensar a formação inicial.
Será utópico propor que uma equipa que analisa os problemas da escola primária ou do 1º ciclo conte com especialistas na monodocência?

O autor deste artigo, Pascal Paulus, nascido em Oostende (Bélgica), passa a integrar o grupo de colaboradores de a PÁGINA escrevendo na rubrica «COISAS do tempo». Pascal Paulus acaba de publicar na Profedições o livro «A escola faz-se com pessoas: Undi N ta Bai?» um contributo para a analise e compreensão da escola e do quotidiano escolar do 1º ciclo em Portugal e do trabalho dos professores neste sector.


  
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Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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