O multiculturalismo confronta-se nos últimos tempos, mais do que nunca, com os seus próprios produtos sem que antes os tenha verdadeiramente equacionado em bases realistas, consistentes e contínuas. A intensificação das migrações e a facilitação de contactos entre diferentes grupos e culturas têm vindo a reconfigurar traços específicos dessas culturas e as relações entre elas. Tem sido um processo globalmente positivo mas que, também, tem arrastado antagonismos que não são só, como alguns pretendem, culturais. Os atentados terroristas em Nova Iorque, Madrid e Londres e os contextos a montante e a jusante desses acontecimentos constituem marcos que alteraram de forma significativa os modos de olhar e sentir as diversas culturas, não só as mais directamente implicadas naqueles acontecimentos. Cresceu o medo e a inquietação em relação ao outro ameaçador, muito extensivo e mais ou menos indefinido. Cresceu também a necessidade de repensar os modos tradicionais de lidar com a diversidade dos que chegaram e vão chegando. Esta atitude ? a necessidade de pensar os modos de lidar com os outros que chegam ? inclui também ? ou, sobretudo? - uma preocupação de defesa. Este contexto coloca o multiculturalismo na mira de ataques (e de silêncios) com diversas origens ao mesmo tempo que tem gerado debates ? necessários - em torno das políticas e práticas de integração cultural, social e cívica nas sociedades de acolhimento. As diversas expressões do multiculturalismo, por motivações ideológicas e emocionais, nunca foram consensuais. Sempre foram objecto de críticas e ataques à direita e à esquerda. À direita por supostamente favorecerem o outro diferente não nacional; à esquerda porque o reconhecimento da diversidade cultural na sociedade e na escola não seria mais do que uma estratégia para manter a submissão e o controlo das minorias sem concessões significativas; ou seja, uma estratégia que reconhece as diferenças para manter as desigualdades. A grande questão que tem vindo a ser colocada é saber porque persistem ou, mesmo, aumentam, antagonismos culturais e problemas de integração, em sociedades assumidas como pluralistas, apesar de décadas de políticas e práticas multiculturais. Entre os críticos prevalece a ideia de que o multiculturalismo e, em particular, as práticas de educação multicultural têm assentado numa visão muito superficial das culturas e das diferenças culturais. Parece que se parte de pressuposto que as culturas de acolhimento têm elementos de irresistível atracção para o outro que, por si só, o converteria aos benefícios dessa sociedade. Sem dúvida que têm os atractivos que chamam os imigrantes e que podem ou não realizar-se. O multiculturalismo seria a forma mais adequada para activar a conversão aos valores da sociedade de acolhimento. Subvalorizam-se, assim, os anseios e as resistências das identidades, que sempre permanecem, dos que chegam. Os anti-racistas partem do pressuposto de um mundo dividido em duas espécies de pessoas: os racistas e as vítimas do racismo, visão que pode aproximar-se do racismo. Com esses pressupostos a educação multicultural e a educação anti-racista podem ser piores do que nada. E em vez de promover a interculturalidade podem aprofundar hostilidades. Na sequência dos atentados terroristas de Londres (Julho 2005), Bhikhu Parekh, em artigo no Courrier International, questiona o multiculturalismo de raiz assimilacionista e integracionista, desenvolvido durante décadas no Reino Unido. Deixa implícitas as insuficiências que não evitam que os interesses do país, supostamente multicultural, seja atacado por nacionais seus. A realização de uma cidadania comum, prevista por algumas perspectivas do multiculturalismo, tem sido, sobretudo, uma formalidade que não tem considerado os processos educativos e sociais necessários para uma adesão intelectual e afectiva a esse sentido comum de cidadania em condições de igualdade. O multiculturalismo necessita de novos alentos para a realização das suas finalidades de cidadania. A principal delas é contribuir para a criação de sociedades onde os imigrantes possam sentir-se genuinamente cidadãos participantes e interessados, dispondo, em simultâneo, de espaço e liberdade para afirmarem as suas diferenças. Sociedades que equilibrem o respeito pelos princípios de uma cidadania participada e interessada comum e pelos valores identitários privados; condições para uma cidadania intelectual e afectivamente participada. A escola tem nesta tarefa papéis verdadeiramente insubstituíveis. Os possíveis modos de o fazer serão objecto de um próximo texto.
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