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A Quinta Feira da Espiga

O fenómeno de revitalização vegetativa, em que a natureza após a longa letargia invernal acorda, desabrochando numa sinfonia de vida, constituiu sempre para as populações arcaicas, um momento mágico e determinante da visão cósmica da existência. Momento aguardado com a ansiedade das perspectivas de novas colheitas mas, igualmente despoletador de dúvidas acerca da sua efectiva realização, este é o  tempo em que chega a Primavera.
Tempo sagrado, como todos os tempos de transição, nele se efectuavam, em épocas passadas, diversos cerimoniais cujas funções exprimiam a comemoração festiva do eclodir primaveril e, algumas vezes até, rituais de expulsão simbólica do Inverno que terminava. Neste sentido, realizaram-se durante séculos, por todo o mundo mediterrâneo, grandiosos festivais florais em que jovens nubentes se espalhavam pelos campos e, em alegre convívio cantavam e dançavam, e se enfeitavam com verduras e flores, num ritual ancestral de que o nosso ?dia da espiga? constitui  herdeiro directo, embora minorado.
Poder-se-á dizer, então, que fazendo parte deste ciclo festivo da Primavera, a Quinta Feira da Ascensão, ou ?da espiga?, corresponde à cristianização de um complexo de festividades pagãs ligadas à celebração e consagração da natureza.
De facto para as sociedades primitivas, a regeneração vegetal, de que a agricultura é função, está dependente, em grande parte, das boas ou más vontades divinas e, em última instância, da maior ou menor fertilidade da terra-mãe.
Não é portanto de admirar que este tempo vital, expresso no renascer das plantas, no desabrochar das árvores e na proliferação das flores e frutos, desencadeasse grandes manifestações de alegria, em que jovens se dirigiam para os campos, para aí, em comunhão com a natureza, festejarem e, naturalmente, adquirirem também eles as energias fecundantes que nesta altura fluíam em profusão.
Mas o ?dia da espiga? era também o ?dia da hora?. Herdeiro de simbolismos primevos, este era um tempo particularmente sagrado. Um tempo por muitos considerado ?o dia mais santo do ano?, em que se não devia trabalhar e em que ?nada bulia?, em que as transgressões  referentes ao trabalho se revelam estranhamente ineficazes, quando não se manifesta até outro tipo de sanção mais radical.
Avultava, aí, uma hora em que as coisas possuíam especiais valências e singulares transcendências... o meio-dia! Essa é a hora em que os ?as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e até as folhas se cruzam? configurando assim, devotadamente, o sinal da cruz?! De sacralismo tão intenso que, como se cré, na zona do Vale do Tejo, nem os ?passarinhos vão ao ninho?!
Ao meio-dia se deviam, então, colher as ervas que iam ser utilizadas na farmacopeia popular durante todo o ano. Ao meio-dia se deviam preferencialmente colher os diversos raminhos que no seu conjunto constituíam a ?espiga?, temporalidade que por razões funcionais foi, em muitas zonas, caindo em desuso.
É um tempo prodigioso, eivado de proibições e obrigações. Nalgumas aldeias acreditava-se que não se podia, nesse dia, cozer pão. Noutras, pelo contrário, o pão cozido era sagrado, mantendo-se incorrupto até ao ano seguinte.
Em Alenquer, por exemplo, o leite ordenhado nesse dia não se vendia, dava-se, já que a realização de negócios, mesmo os mais simples,  constituía mau presságio.
Em casa ?a espiga? era, e é, guardada atrás da porta ou junto da imagem de particular devoção. A mera existência numa habitação desse simples raminho, constitui poderoso e multifacetado amuleto. Para dar saúde, alegria e abundância e, especialmente, para que nessa casa nunca faltem os indispensáveis azeite e pão!
Aliás, o seu sentido propiciatório era, em tempos idos, evidente e diversificado. Quando das trovoadas, um bocado posto a arder à lareira afastava os raios  e oferecia protecção eficaz contra a tormenta.
A este tempo estavam ainda ligadas as oferendas das ?primícias? e as ?benções dos campos?, nos nossos dias, por razões funcionais, de contornos institucionais mais ou menos litúrgicos e de temporalidade mais variada. Em muitas zonas do país, costumavam-se soltar, durante a missa, grupos de andorinhas que, paciente e delicadamente, se tinham apanhado nos dias anteriores, adornadas as mesmas com coloridas fitinhas e lacinhos vermelhos.
Enfim, sejam ou não vistos, hoje, numa perspectiva canónica, fazendo ou não parte do imaginário popular, estas tradições que comemoram o desabrochar da Primavera são sempre tempos especiais na temporalidade mística das populações rurais mediterrâneas e, na sua coexistência com o sacralismo da terra-mãe, hierofania exemplar da sua relação com a esfera do sagrado.
É o milagre da vida, que se renova periódica e inexoravelmente todos os anos. Da terra prenhe eclodem os frutos naturais. Semente divina,  condição de sobrevivência, dádiva da fertilidade que as massas urbanas apenas, hoje, apreciam à distância!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém
Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém

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