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A Imprensa e a Educação ou a melhor maneira de construir um «Think Tank»

Quando ouvi a notícia, no passado Sábado (dia 27 de Maio), acerca da intenção do Governo em abrir o processo de discussão pública sobre o novo Estatuto da Carreira Docente da Educação não superior, na qual emergia com grande destaque a questão da avaliação do desempenho docente, imaginei de imediato o corrupio de opiniões que nos dias seguintes inundariam as páginas dos principais jornais que temos (mas não merecemos). E imaginei também o seu homogéneo (e desgastado) conteúdo. Só foi preciso esperar pelo dia seguinte para ler um artigo do «maior» especialista da educação existente em Portugal, de seu nome José Manuel Fernandes, director de um jornal que gosta de se apresentar como uma das principais referências de isenção e de qualidade no nosso país mas que, em minha opinião, tem vindo a assumir aquilo que poderíamos designar como a antecâmara de um «Think Tank» («banco de ideias», para utilizar uma expressão muito comum no Brasil para definir aquele tipo de organização made in USA e destinada a influenciar directamente as políticas governamentais).
A facilidade com que se escreve um editorial sobre um determinado assunto não pode ser explicada de muitas formas: ou o assunto é urgente (por exemplo, a eminência de um conflito armado ou de uma catástrofe; ou somos especialistas no campo e facilmente nos pronunciamos sobre ele; ou então temos a arrogância própria de quem, não se distanciando um milímetro do senso comum mais banal, não tem qualquer escrúpulo em cair no ridículo da falta de rigor e da explanação de ideias fáceis (opinionês?); por último, há ainda a considerar o facto de podermos estar, consciente e deliberadamente, certos quanto aos efectivos resultados das propostas que defendemos, mas que mantemos ocultos por uma questão estratégica óbvia (a isto chama-se cinismo). Devo dizer que sou um leitor diário do Público desde o seu primeiro número, situação que só pode ser explicada pela equipa que então o integrava, por um lado, e pela actual ausência de alternativas credíveis (embora haja quem pense que entre dois males menores não se deva optar?), por outro. Por isso (mas não só), sinto-me particularmente à vontade para o criticar.
Também sei que nos próximos tempos (talvez já nos próximos dias) iremos assistir a mais artigos de opinião dos fanáticos neoconservadores de serviço no jornal em questão, tais como um editor, um ilustre professor da universidade católica, um fiscalista que virou especialista em educação  a qualquer preço e que se assemelha, na cruzada (contra tudo que cheire a Estado) que lhe colocaram entre mãos (provavelmente convencido que é empreendimento seu), a uma barata tonta, uma especialista em história, outra em pró-americanismo militante (à falta de melhor designação), provavelmente uma socióloga que parece ter esquecido muito do que em tempos escreveu e um sociólogo que também costuma ter opinião sobre tudo, entre os que mais se destacam neste processo ignóbil de falsificação das realidades (não acredito que sejam sinceros no que repetidamente afirmam).
Analisando o espécime que JMF nos apresenta no «seu» jornal, importa dizer desde já que se trata de uma peça exemplar na arte da «simplificação», da «falsificação» e do «cinismo». Infelizmente (porque não possuo o mesmo espaço para me expressar e também por pensar que não é possível abordar questões tão complexas de um modo tão ligeiro?), não é fácil desmontar cada um dos argumentos utilizados por JMF como gostaria. Por isso aqui ficam algumas ideias para pensar:
-  Saberá JMF o que é ser professor no ensino não superior actualmente?
-  Não sabe JMF que os professores, em Portugal, sempre foram maltratados pelo Estado? Os direitos profissionais (que JMF designa por privilégios!) só há uma dezena de anos é que começaram a ser reconhecidos e alguns já estão cansados com tamanha heresia!
-  Os bons e os maus professores são assim tão fáceis de identificar? E os outros??
-  Quais são as empresas que JMF considera como boas, isto é, como exemplos a seguir no modo de avaliar os seus trabalhadores e de os promover, dando a ideia de que o mundo empresarial é um modelo de virtudes (?fora da Administração Pública as coisas não funcionam assim?)? Certamente que não será no Grupo Sonae, porque se tal ocorresse JMF já teria sido despedido, pois o jornal que dirige, de acordo com o que li no Diário Económico, farta-se de dar prejuízo (na casa das centenas de pontos percentuais no último ano!). Já agora: quem é que paga estes prejuízos?
Todos sabemos que as nossas escolas não são um modelo de funcionamento, a começar pelos elevados níveis de insucesso e abandono que sempre produziram (não é uma realidade só nos dias de hoje). Como profissional da educação sempre me esforcei por construir uma Escola cada vez mais democrática, preocupada com os direitos humanos essenciais e, por isso, justa, cidadã  e integradora. Raras foram as vezes que senti vontade da tutela em dar corpo a essa ideia. As responsabilidades pela situação que se vive nas nossas escolas terão de ser distribuídas por muita gente, mas os professores não podem ser os bodes expiatórios preferenciais, até porque nunca os deixaram participar no processo de produção das políticas de educação (nem mesmo depois dos decretos ditos de autonomia).
As gastas propostas apresentadas até à exaustão pelos arautos da Nova Direita, se aplicadas, só contribuiriam para agravar a situação, ou seja, constituem parte do problema e nunca a solução, como o comprovam as (já abundantes, infelizmente) situações internacionais em que tiveram a oportunidade de emergir.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho

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