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Escola portuguesa e democracia: das promessas por cumprir

Os números do insucesso e do abandono escolares revelam-nos como no âmbito do sistema educativo português se continua a discriminar negativamente os alunos provenientes dos meios sociais desfavorecidos. Há quem acuse os professores por este descalabro ou a indiferença a que esses alunos são votados pelas respectivas famílias. Há outros que apontam o dedo quer às políticas catastróficas do Ministério da Educação, quer às injustiças de um mundo ignóbil. Há, ainda, aqueles que encontram nas costas largas do laxismo educacional, que supostamente os mentores do «eduques» patrocinaram e difundiram, a origem de todos os males. A lista das acusações e dos acusados não tem fim, tal como a lista subsequente de soluções que se propõem. Uma lista onde imperam, por um lado, estranhas contradições e paradoxos e, por outro, afirmações equívocas que, pretendendo constituir-se como soluções, não deixam de ser problemas que se acrescentam aos problemas já existentes, aqueles que justificam a adopção dessas mesmas soluções.
Vê-se, por isso, que são aqueles que reivindicam a necessidade de retomar a autoridade perdida dos professores, os mesmos que aplaudem freneticamente a ofensiva ruidosa que a actual ministra tem vindo a protagonizar contra esses profissionais, ofendendo-os, desrespeitando-os e contribuindo, assim, para que aquela reivindicação seja posta em causa pelos mesmos que a acalentam.
Promovem-se leituras incompetentes sobre o contributo do construtivismo ou das competências e das modalidades contextualizadas de gestão curricular para, assim, se utilizar a inquestionabilidade dos saberes como arma de arremesso contra os mesmos alunos que terão que ser resgatados do abandono e do insucesso a que as escolas os votam.
A avaliação normativa e os exames, pelo contrário, associam-se coerentemente à afirmação da necessidade de os professores serem avaliados pelo seu desempenho, exprimindo-se, por esta via, a convicção de que a melhoria das intervenções de uns e de outros depende, sobretudo, do processo de selecção a que todos têm que ser sujeitos. Acredita-se que a discriminação desses desempenhos é a solução milagrosa a adoptar, como se o acto de avaliar não fosse mais útil caso correspondesse a uma operação através da qual se torna possível adquirir uma consciência tão clara quanto possível acerca do que se fez, do que não se fez e do que se poderia ter feito ou do que se fez bem e do que se fez mal, uma operação que poderia contribuir, assim, para justificar a assunção de decisões tão fundamentadas quanto adequadas.
A promessa por cumprir que a igualdade de oportunidades, só por si, consubstancia não é, como se pode constatar, uma responsabilidade exclusiva das escolas e dos professores. É uma responsabilidade a que estes não se podem furtar. Importa até que o entendam como um desafio profissional prioritário. Um desafio que os obrigue a reflectir, no seio do seu grupo profissional, acerca das suas práticas de gestão curricular, acerca do modo como organizam o tempo e os espaços de aprendizagem dos seus alunos ou, ainda, acerca das estratégias de mediação pedagógica e dos processos de avaliação que animam. Não sendo estes os únicos compromissos que os professores terão que assumir, são estes certamente os compromissos nucleares que configuram a sua intervenção como profissionais. Uma intervenção que, contudo, não poderá ser dissociada quer da acção política das estruturas centrais e regionais do Ministério da Educação quer da acção que, também neste âmbito, outros actores, outras instituições e, igualmente, outros ministérios deverão e terão que assumir. É este debate que o Ministério da Educação poderia promover, mas não promove, já que é chegado o momento de discutir, por exemplo, algumas das manifestações de indisciplina e de violência que têm lugar nas escolas que não poderão ser entendidas, apenas, em função do que aí se propõe e do que aí acontece. Manifestações essas que se revelam no interior destes contextos educativos, embora devam ser compreendidas à luz de um outro tipo de dinâmicas, as quais obrigam a abordar essas problemáticas em função de ecossistemas psicossociais bem mais amplos e complexos.
À luz da estratégia política que a actual equipa ministerial tem vindo a adoptar, a reivindicação das escolas se assumirem como espaços capazes de gerar oportunidades iguais para os seus alunos é uma reivindicação que parece circunscrever-se, segundo essa perspectiva, ao trabalho profissional dos professores. Uma opção que é tão insensata quanto cruel para estes e para os seus alunos, devido quer à inconsequência da mesma quer ao conjunto de equívocos que a sustentam. Uma opção que, face às vicissitudes da vida de muitas crianças e jovens, se encontra votada ao fracasso e que, assim, os onera, tanto a eles como aos seus professores, pelo fracasso de intervenções que, verdadeiramente, não lhes dizem respeito, ainda que o facto de os responsabilizar por isso acarrete custos elevados que contribuem para vulnerabilizar socialmente tanto uns como outros.  
Enfim, o não cumprimento da promessa relativa à igualdade de oportunidades nas escolas é algo que diz respeito a essas escolas, mas que não poderá deixar de ser dissociado, também, da qualidade da vida democrática em Portugal, nomeadamente das contradições entre a reivindicação dos valores democráticos, como valores de referência da vida política, e as injustiças económica e social que não poderão ser ignoradas como factores potenciadores de exclusão.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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