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Carta aberta à minha orientadora de estágio

Cara amiga,

Dez anos após o estágio do ramo de ensino da minha licenciatura, há um conjunto de reflexões sobre a minha experiência profissional que lhe quero transmitir. Sinal destes tempos de pessimismo nacional, de crise anunciada e instalada, que fustigam a nação e a sua educação, sinto-me perplexo perante um contexto desmotivador no ensino.
Perguntar-me-á se perdi o interesse pelas aulas ou pelos alunos. Não. Também sabe que não é pela falta de estabilidade profissional. É, tão somente, por ter acompanhado dez anos de uma política educativa que tem contornos intrinsecamente  desestabilizadores e por ser um agente, malgré tout, dessa mesma política.
 Ao longo das nossas reuniões, insistia naqueles que considerava os pilares de uma prática lectiva consistente: reflexão, preparação e ponderação. Digamos que, nos tempos que correm, perante este mal-estar instalado nas escolas nem a motivação nem um certo sentido de profissionalismo resistem a tão duras provas. E evitemos as tão incontornáveis ?aulas de substituição?...
De antemão, refiro todo o conjunto de reformas, reorganizações, decretos-lei, despachos normativos e toda a panóplia de legislação que orientou as diversas componentes da prática lectiva, nas escolas básicas.
Não é meu objectivo criticar esta ou aquela política. Constato unicamente  que a metáfora nada motivadora de que ?o ensino era uma manta de retalhos?, tantas vezes desabafada pelos meus professores de liceu, se tornou num  eufemismo de uma realidade densa, complexa e, muitas vezes, paradoxal.
Proponho mesmo um desafio, quiçá de teor académico: proceder ao levantamento de todas essas medidas, o seu tempo de implementação e de aplicação educativa. Para os mais intrépidos, a análise do tempo de vigência dessas medidas com a sua efectiva avaliação pelos diversos agentes, ou seja, compreender se uma política ou decisão foi substituída porque não teve efeito prático e em que moldes, se alguma teoria a tomou por obsoleta ou anti-pedagógica ou outro motivo ainda... Nestas coisas do ensino, diz-me a experiência e o bom-senso que a cíclica alteração só pode conduzir à instabilidade.
Estas minhas impressões não são um sinal de resistência à mudança ou de incompreensão de factores determinantes na Educação em Portugal:
- o significativo esforço social para tornar a escolaridade para todos uma realidade importante nos últimos trinta anos, assumindo a pesada herança salazarista;
- a emergência de tornar a Educação um instrumento de valorização pessoal e profissional, tendo em conta uma sociedade em constantes mudanças;
- o confronto de um modelo tradicional, que formou gerações, com uma educação multidiversificada dirigida para as exigências do século XXI.
Comparativamente com a maioria da ?outra? Europa, o nosso desafio foi maior e, se em parte, foi superado, deve-se ao sentido profissional e voluntarioso dos professores envolvidos. Não obstante, este projecto de uma ?Educação para todos? é interpelado pelo próprio sistema que ?impulsivamente? legisla, desrespeitando os tempos pessoais e profissionais dos vários agentes em campo. Neste sentido, é significativo o caso do despacho normativo n.º 50/2005 de 9 de Novembro que determina a concretização dos planos de recuperação logo no final do 1º período. É lícito inquirir se esta medida exigiu o essencial envolvimento de todos os professores ou se esvaiu numa mera aplicação burocrática.
Poderá, a cara amiga, contrapor que há uma crise nos diversos modelos de ensino e que,  por todo o lado, surgem apelos de mudança. Concordo, mas uma medida para ser exequível necessita da reflexão, participação e planificação dos seus agentes, não sendo de todo inconcebível preparar a agenda de um ano lectivo, no mínimo, no final do anterior.
Se, como tanto se tem lido este ano lectivo, a paixão de ensinar agoniza, é devido a um ?estado das coisas? nas nossas escolas que afecta aquilo que poderia ser uma relação duradoura e até aprazível de ensino-aprendizagem.
Quais os factores desta ruptura?
-Uma imagem social e profissional dos professores redutora e em crise;
-Um ciclo de notícias que gera um conjunto de polémicas relativas à
Educação em Portugal que envolvem a imagem do professor e a função das escolas (o descontentamento da classe docente, o insucesso nacional e os fracos resultados em estudos internacionais, a iliteracia, a indisciplina nas salas de aula e nas escolas, a violência juvenil, que nem sempre está relacionada com a escola, mas que critica a função desta, os rankings, as incontornáveis questões sobre a escola pública / escola privada, os exames ou as provas de aferição e, ultimamente, o trabalho ?efectivo? dos professores em comparação com as taxas de absentismo... É curioso, neste panorama agitado, que um ex-ministro da Educação tenha recentemente escrito um artigo sobre a avaliação e os exames, intitulando-o de ?A viradeira?...
Pode mesmo sugerir-se que a conjugação destes elementos com uma ?cultura de exigência? no ensino se torne algo kafkiano. Para além disto, nestes últimos dez anos, muitas coisas têm sido pedidas às escolas básicas: constituição de Assembleias de Escola, constituição de Agrupamentos, elaboração dos Projectos Educativo e Curricular de Escola, Gestão Flexível dos Currículos, avaliação por competências, implementação das Áreas Curriculares Não Disciplinares, ... perdoe-me, outra enumeração, que não terminaria por aqui, mas que nos deixa espaço para algumas interpelações:
- Que avaliação é feita destas medidas e em que moldes?
- Há um plano nacional consistente de formação contínua da classe docente
que sensibilize e motive os professores para estas alterações?
- Há uma efectiva participação dos professores na reflexão sobre estas  medidas e na forma como influenciam o processo de ensino ?aprendizagem?
Para que o sucesso educativo seja uma meta a atingir, é imprescindível contar com os professores, não de uma forma coerciva em forma de despachos e ofícios, possivelmente convertidos em burocratização, mas apelar ao seu ?saber de experiências feito?.
Porventura, gostaria de encarar os próximos dez anos com optimismo... Até breve.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

João V. Faria
Professor 8º A, Amadora
João V. Faria
Professor 8º A, Amadora

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