Página  >  Edições  >  N.º 156  >  «Cinema é uma coisa para delinquentes»

«Cinema é uma coisa para delinquentes»

Em Abril Michel Bôle-Richard escreveu uma reportagem no ?Le Monde? sobre a vida dos jovens na Arábia Saudita que me parece exemplar, por isso pareceu-me que talvez fosse interessante dar-vos a conhecer algumas passagens.
Abdullah Eyaf, um jovem realizador saudita, terminou à pouco tempo o seu primeiro documentário, ?Cinema 500 Km?. Segue um grupo de amantes de cinema sauditas que resolvem ir de carro de Riade até ao Bahrain apenas pelo prazer de finalmente verem um filme num verdadeiro cinema. ?Não é um filme militante, é apenas a história de uma viagem a um mundo novo, uma procura de desfrutar uma arte da maneira para a qual ela foi concebida? diz Raja al-Muayri,25 anos, o crítico de cinema do diário ?Al-Riyadh? e membro do referido grupo. Pela net, ele e os seus amigos tomaram consciência que ?na Arábia Saudita só era possível ver 5% dos filmes produzidos no mundo inteiro? (e apenas na televisão).
O grupo que começou com doze elementos hoje tem mais do dobro. Cresceram tornando-se críticos, realizadores, argumentistas e actores, determinados a partilhar com os outros o mundo novo que descobriram. Não será o que se possa chamar uma tarefa fácil, mas Mutayri acha que existe uma genuína procura por filmes. Os sauditas são três quartos dos espectadores do vizinho Bahrain e acredita abrirão finalmente dentro de alguns anos. ?Homens de negócios como Walid  Ben Talal (a quarta pessoa mais rica do mundo), patrão do grupo Rotana, vê-o como um mercado lucrativo e está a fazer campanha pela mudança. A sociedade saudita aprová-lo-á, porque apenas uma minoria está contra a abertura dos cinemas.?
Alguns dos centros comerciais do país já têm cinemas; os donos estão apenas à espera de luz verde para abrir as suas portas. Há estúdios também, no Mar Vermelho no porto de Jeddah. ?A influência dos imãs está em declínio?, diz Mutayri. ?As pessoas já perceberam isso, contrariamente ao que os pregadores dizem, os filmes não destroem o tecido social. A abertura dos cinemas levantará a última barreira  cultural...e as outras irão desaparecer ao mesmo tempo.?
Em muitos aspectos o reino já pertence à aldeia global, graças à internet, à televisão por satélite e telemóveis. A revolução está a ser feita muito lentamente por uma juventude frustada gritando por mudança. Sem acesso a  cinema, teatro, concertos e discotecas, as pessoas estão a descobrir um mundo novo.
?Há alguma variedade?, diz um jovem que pediu anonimato, mas as actividades de lazer estão dominadas por ?especialistas? que deixam os jovens de fora. A velha guarda monopoliza tudo, impedindo os jovens de se exprimir. A pressão está subir e qualquer dia a bolha rebenta. Já existe uma ?arts scene?, nas caves e garagens, e passando à superfície. É um desenvolvimento natural e inevitável.?
O apetite da juventude saudita pela mudança palpável, mas com dois terços da população(23 milhões no total, incluindo 6 milhões de emigrantes, com crescimento anual de 3,2%) com menos de 24anos, e quase metade com menos de 14, o problema principal é encontrar trabalho. Todos os anos 150 000 a 200 000 jovens chegam ao mercado de trabalho que apenas absorve 80 000. Quase um terço do grupo etário dos 20-24 anos está no desemprego.
Muitos jovens estão num beco sem saída, com poucas hipóteses de diversão excepto televisão, vídeo games, compras, comer fora e desporto. O número de cafés subiu em flecha. É onde os homens se encontram todas as noites  No ?One Way Café?, o café da moda junto a um  poço de água no deserto numa televisão passa em directo um jogo da liga espanhola três estudantes da universidade, Mohad, Muhammad e Abdulazis estão de acordo que o desemprego é o problema principal. ?Toda a gente diz que está difícil,? dizem, ?e precisamos de muito dinheiro para casar, temos de esperar até aos 25 anos antes é impossível?. Abdulazis diz que a juventude saudita não está aborrecida. ? Isto não é um país Ocidental. É diferente. Temos de preservar essa diferença e respeitar a diversidade cultural Não queremos copiar o Ocidente, agarrar apenas as coisas boas , mas acima de tudo impedir a destruição das nossas famílias e da sociedade. Cada país tem o seu modelo de desenvolvimento, sem necessariamente seguir as expectativas dos outros. De qualquer maneira quer queiramos quer não, a mudança continuará. É inevitável.?
Mesmo nos direitos das mulheres? ?Claro, há tradições estúpidas, como a proibição delas conduzirem. Mas, repare já temos bancos mistos, hospitais, supermercados... o país abrirá. Às vezes penso que demasiado depressa... até me corta a respiração.?
Mesmo puristas islâmicos como Mansur Askar, um sociólogo da Universidade Muhammad Ibn Saud Islamic diz: ?Sou um conservador, mas temos de viver o presente, com a net e a televisão por satélite. A mudança é uma coisa normal, mas apenas devemos apoiar o que é aceitável. Penso que isso do cinema é uma coisa para delinquentes. Aceitar que as mulheres possam conduzir é impossível, porque já há engarrafamentos a mais.?
Na noite na rua Tahlia, a principal avenida de Jeddah, jovens conduzem carros enormes para cima e para baixo. Arrastam-se nos centros comerciais para vislumbrar ao longe as raparigas. Mas as notas que rabiscam em papéis para deixar cair nos seus cestos de compras são já coisas do passado, suplantadas pelos telemóveis e as mensagens de texto.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo