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O perigo dos manuais escolares e a praga das editoras

... se um docente, no ano da escolha de manuais para o 10º ano, pode receber cerca de 20 manuais de oferta, a uma média de 20 ¤, consegue aí uns 400 ¤;  se numa escola houver aí uns 100 professores, chegamos a cerca de 40.000 ¤ (oito mil contitos por ano?) o que, convenhamos, já dava muito jeito às escolas.

A legislação emanada no passado mês veio reequacionar questões importantes sobre o uso e o estatuto dos manuais escolares nas escolas.
Embora vivamos hoje num mundo em que as verdades científicas se alteram com uma enorme velocidade, é também um facto que os conhecimentos básicos a adquirir pelos jovens futuros cidadãos têm ainda paradigmas que se mantêm, naturalmente, por vários anos. Não deve pois ninguém sentir-se perturbado se os manuais passam a ser adoptados por um período de seis anos; sobretudo se isso vem contribuir para que as famílias portuguesas possam poupar um pouco do seu já tão escasso fundo de maneio.
Alguns lembrar-se-ão, na escola entre o final da década de 60 e nos primeiros anos da de 70, de um professor por vezes chamar a atenção para a desactualização de um ponto do manual, mandar riscar as páginas em questão, a lápis e com todo o cuidado, para depois apresentar ele próprio o novo conhecimento; e esse docente, que sabia mais do que o Livro Único, acabava por ser alvo de admiração pela sua sabedoria, pelo exercício natural da sua profissão intelectual, de que a investigação e a actualização eram evidentemente parte intrínseca, com tempo estipulado para tal.
O facto de os manuais poderem passar de irmão para irmão pode também vir a contribuir para que o seu estatuto de ?bem essencial? vá desaparecendo no âmbito da representação social de que as escolas precisam deles como de pão para a boca. Falemos da sua comercialização: se um docente, no ano da escolha de manuais para o 10º ano, pode receber cerca de 20 manuais de oferta, a uma média de 20 ¤, consegue aí uns 400 ¤;  se numa escola houver aí uns 100 professores, chegamos a cerca de 40.000 ¤ (oito mil contitos por ano?) o que, convenhamos, já dava muito jeito às escolas. Tudo isto são lucros das editoras, evidentemente; ninguém dá nada a ninguém. Milhões desperdiçados por esse país fora, sem qualquer sentido.
Para além deste non sense comercial, duas questões primordiais serão ainda de levantar: a centralidade que se dá aos manuais nos processos de ensino-aprendizagem e a sua qualidade científico-pedagógica. Concebidos para ?ocuparem? todo o tempo de actividade lectiva e até o de casa e como agentes de formação dos docentes que parecem confiar piamente nos autores e nas editoras, os manuais escolares são quase sempre assumidos como currículo nacional. Pouca gente sabe que não é obrigatório adoptar um manual. Muito poucos parecem saber que é bem possível trabalhar sem manual. Mas a crise de identidade que se vive nas escolas e individualmente por cada professor, parece encontrar nestes ?arautos? a sua tábua de salvação. O que não deixa de ser sinistro: uma tábua de madeira tão densa que, parecendo aguentar uma profissão à tona durante algum tempo, acaba depois, pouco a pouco, por a afundar totalmente.
Para além deste problema da dependência dos docentes, surge a questão científico-pedagógica.
Os professores não têm disponibilidade para procederem a uma boa escolha, dada a quantidade da oferta e porque a época de selecção é no final do ano lectivo, para permitir que as editoras se organizem. Os erros científicos (que se podem com facilidade encontrar em manuais, bastando para tal folheá-los numa livraria) são uma realidade; o que será estranho, se considerarmos a ?fama? de alguns autores e o staff que se pressupõe existir nas editoras.
Quanto às questões pedagógicas, basta enumerar algumas:
do ponto de vista do trabalho do professor - a planificação desadequada, muitas vezes a adulterar o currículo nacional, a possibilidade de trabalho com a escolha efectuada só depois de quinze anos de serviço quando se efectiva, o apelo a um modo pedagógico transmissivo e colectivo muitas vezes desajustado, a desadaptação aos Projectos Curriculares de Turma adequados aos espaços e aos momentos e a condenação do professor a não ser um  mediador entre o ensino e a aprendizagem, entre o aluno e o Mundo;
considerando o aluno - trabalho tradicional de escrita de fichas individualmente, ausência de recurso a outras fontes de investigação, desvalorização de atitudes e valores, inexistência de perspectivas interdisciplinares, mensagens pouco claras e difíceis para os níveis etários, desconhecimento do contexto social da escola.
É bom que se mexa, finalmente, no ?império? actual das Editoras: o estatuto ganho pelos manuais escolares não faz sentido na sociedade democrática que pretendemos, com um sistema de ensino para todos.  E que toda a polémica não venha de novo atirá-los para a ribalta; ainda que possam servir de ?amparo? a alguns docentes e às escolas, é preciso encontrar outros caminhos.


  
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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