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O Princípio do Ostracismo

... a necessidade de competição entre os gregos ganhava um sentido especial porque o que estava em causa eram os valores do social e a honra da sua cidade. A este sentimento chamou-lhe Hesíodo o princípio do ostracismo.

«Apareçam e candidatem-se aos lugares que ocupamos hoje» (Olimpo, Jan./Fev. 2006), vociferou Vicente Moura o Presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), presumivelmente dominado pela má Éris,  aquando da comemoração do 96º aniversário da prestigiada instituição. Não tinha necessidade. Revelou falta de segurança e de capacidade para liderar a organização desportiva de maior importância para o desenvolvimento do desporto nacional. Demonstrou, em suma, défice de agôn e de educação agonística. Devia saber que a má Éris não é boa conselheira.
A educação agonística para os gregos antigos era o bem-estar social. O jovem quando competia na luta, na corrida ou nos lançamentos durante os Jogos, pensava na satisfação da sua cidade natal na medida em que era a glória desta que ele, através da sua, queria projectar. Até as coroas de louros que os juízes colocavam na cabeça dos grandes heróis olímpicos, estes, as consagravam aos deuses da sua cidade. A este estado de espírito os gregos chamavam-lhe ?areté?, uma espécie de virtude própria da nobreza aristocrática, do heroísmo guerreiro, da honra, da glória, do agôn e da vontade de vencer. Por isso, eles cultivavam a destreza e a força invulgares não só como exercício da estética e do combate leal, mas também como o suporte indiscutível de qualquer posição de liderança. Quer dizer, a ambição existia, só que tinha limites e estava condicionada pela entrega concreta à causa social. Neste sentido, a necessidade de competição entre os gregos ganhava um sentido especial porque o que estava em causa eram os valores do social e a honra da sua cidade. A este sentimento chamou-lhe Hesíodo o princípio do ostracismo.
Mas o que é o princípio do ostracismo? No sentido de renovar constantemente o círculo do agôn, os gregos não eram favoráveis à hegemonia de um vencedor sobre os demais concorrentes, por um grande período de tempo. Tal situação retiraria aos vencidos a vontade para uma nova disputa. Esta tendência agónica é representada através da estória do corajoso Hermodoro que acabou banido e votado ao ostracismo pelos efésios pelo facto de, num acto de heroicidade, superar todos os seus companheiros de batalha, desrespeitando a táctica bélica do seu exército: ?Entre nós, ninguém deve ser melhor, se alguém no entanto, o for, que o seja noutro lado e entre outra gente.? E qual a razão para que ninguém pudesse ser o melhor? Porque, se tal ocorresse, a competição esmoreceria e desta maneira ficaria ameaçada a razão do Estado helénico. Nietzsche a este propósito afirma que ?tal é o cerne da ideia de agôn, que detesta o despotismo e teme os seus perigos, gerando como meio de protecção contra o génio, precisamente ? um segundo génio.?
Deste modo, quando nos mais diversos sectores sociais da sociedade portuguesa, entre eles o desportivo, se levanta a questão da limitação de mandatos, não se está a expressar mais do que o princípio do ostracismo que, em termos de desenvolvimento humano passa por uma forte cultura democrática porque agónica, que devia estar perfeitamente assumida, mas que infelizmente não está. Repare-se que existem demasiados dirigentes desportivos que no vértice do Movimento Desportivo através dos mais diversos expedientes estatutários e outros, ocupam os lugares de liderança há quinze, vinte, vinte e cinco e mais anos. Ora, isto é uma perversão do agôn e da própria democracia que só revela o atraso cultural do país e do desporto.
A ambição desmesurada, livre de regras, de equilíbrios, de lealdades, de vergonha e de bom-senso, que conduz ao espírito de competição exacerbado, acaba por privilegiar o ignorante, na medida em que a ignorância é atrevida, pelo que a sociedade é obrigada a introduzir regras a fim de preservar o interesse público.
Em conformidade, é necessário que a cultura democrática dos portugueses saiba distinguir entre vitória e competição. Em termos sociais o que é importante é a competição e não a vitória. Quando a vitória tira significado à competição indo ao ponto de a destruir, então, tudo deixa de fazer sentido. Não há vitória que valha sem competição. O dirigismo desportivo de cúpula que grassa no país, em muitas e demasiadas situações limita-se a prolongar-se e a multiplicar-se nos lugares, porque destruiu o espírito do agôn e a tradição da competição que haviam de presidir à vida desportiva.
Em resposta, naquilo que nos toca, na linha de Hesíodo temos de afirmar clara e pedagogicamente ao presidente do COP que quando à partida as regras do jogo estão viciadas porque o areté, quer dizer, o espírito nobre e de superação do agôn está completamente pervertido, os cânticos de desafio e vitória que vocifera já só anunciam o aproximar dos jogos fúnebres e estes, pela lei da vida, mais tarde ou mais cedo, quer ele queira quer não, hão-de ser realizados em sua honra.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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