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"Falta capacidade criativa para falar do 25 de Abril"

A revolução vista pelo olhar de duas gerações

O 25 de Abril comemora este ano o 32ª aniversário. Mais de três décadas depois, que balanço faz a geração que o viveu? E na memória dos mais novos, como foi a revolução? O país é hoje mais democrático e igualitário? A escola ajudou a transformar a sociedade portuguesa? 
Manuela Coelho, 62 anos, e Marta Cruz, 35 anos, mãe e filha, ambas professoras do ensino secundário, aceitaram o desafio proposto pela PÁGINA de pôr duas gerações em diálogo sobre o 25 de Abril, a sua evolução e as suas marcas na actualidade. Uma entrevista em tom de conversa onde se aborda a sociedade, a política e a escola.

Trinta e dois anos depois da revolução, que ideais ainda sobram dela? Existirá ainda um verdadeiro desejo de liberdade e de justiça social?

M. Coelho: Os ideais referem-se por regra a absolutos, por isso não se alcançam. Permanecem sempre, mais perto ou mais longe. Podem por vezes estar como que adiados, por cansaço ou desilusão, mas morrer em quem alguma vez os perseguiu penso que não. Acho que só não deseja justiça social quem vive da exploração do trabalho ou dos bens de outrem. Mas vivemos hoje um tempo de maior individualismo e por isso menos dado à reflexão e ao debate sobre como resolver de forma justa os problemas que afectam a sociedade. Mas há ainda muito quem lute e de forma organizada por esses ideais e quem isoladamente os promova.

O que fará com que as actuais gerações ? pelo menos à primeira vista ? sejam menos inquietas do que a geração que fez o 25 de Abril?

M. Cruz: Talvez o facto de hoje em dia não se identificarem com ideais e objectivos tão concretos como aqueles que deram origem à revolução e por não viverem uma situação de limitação das liberdades como nessa altura acontecia.

Será que hoje não haverá conquistas tão prementes como essa?

M. Cruz: Sim, mas não são objectivos comuns. Hoje em dia privilegiam-se as conquistas individuais.

M. Coelho: Eu penso que continuam a existir problemas e valores intemporais que se colocam a todos. A tolerância será porventura um dos mais actuais, e seria um bom tema para reflectir nas escolas.
Há uma frase de Dostoievsky que afirma ?quando um homem perde qualquer objectivo e qualquer esperança, não é raro que por tédio se transforme num monstro?. E eu questiono-me se muitas vezes as atrocidades que se cometem em nome da intolerância não tenham na base a falta de objectivos e de ideais.

Apesar de na altura seres muito nova para te dares conta do que estava a acontecer, que impressões te ficaram da revolução?

M. Cruz: Eu tenho uma ideia essencialmente romântica, talvez por influência dos meus pais, e apesar de não a ter vivido consigo perceber as motivações que estiveram na sua origem e as emoções que transbordaram naquela altura. Hoje em dia valoriza-se pouco o saber e mais a posse. Isso é visível nas atitudes e nos valores dos alunos, e dos próprios pais, que, mesmo fazendo parte da geração do 25 de Abril, julgo que não absorveram os valores humanistas decorrentes da revolução.

Será que essa atitude não se deve ao facto de, então para cá, não se terem conseguido concretizar algumas das conquistas sociais caras à revolução, como o pão, a saúde e a habitação para todos?

M. Cruz: Sim, em parte. Mas o acesso à educação, uma das conquistas mais importantes, foi um passo importante nesse sentido. Apesar de ainda serem precisas algumas gerações para o país sentir os efeitos da massificação da escola, isso irá acabar por acontecer. No entanto, ainda hoje, muitos pais, apesar de terem níveis de escolarização baixos, não valorizam o conhecimento como seria desejável.

O facto de um maior número de pessoas ter acesso à escola não significa que tenham mais acesso ao conhecimento. Será que isso não falhou?

M. Coelho: Uma coisa é analisar o primeiro ano da revolução, que transformou Portugal para melhor, e outra são as divergências em relação aos objectivos sociais que se tentou implementar. O 25 de Novembro, que determina uma inversão relativamente a esses objectivos, é um bom exemplo.
Depois, a abertura de Portugal à Europa e ao mundo trouxe consigo processos que transformaram o país, nomeadamente ao nível da pedagogia do ensino, que já tinham demonstrado a sua falibilidade e, na minha opinião, não tinham aplicabilidade no nosso contexto.
Depois, os próprios valores trazidos pelo mercado, que actualmente parece ser o ídolo das pessoas, não dão muito espaço de manobra à própria escola e acabam por relegá-la para segundo plano.

Será que, à semelhança do passado, a escola de hoje não continua a ter marcas de elitismo ? sobretudo ao nível da reprodução das desigualdades sociais?

M. Coelho: Não. Eu penso é que temos uma diferença cada vez maior entre o número de alunos que podem ser considerados excepcionais e aqueles cujo nível médio tem descido acentuadamente, que é cada vez maior...

M. Cruz: Concordo. Apesar de nunca ter ficado na mesma escola por muito tempo, e não ter, por isso, um termo de comparação, esse decréscimo é incontestável, principalmente entre o litoral e o interior.

M. Coelho: Penso que se a tutela tivesse dado mais liberdade de acção aos professores, permitindo-lhes actuar em projectos de proximidade e no ajustamento dos currículos aos contextos locais, isso lhes teria dado outro grau de confiança, de responsabilidade e os resultados poderiam ter sido outros.
A gestão democrática que se construiu a seguir ao 25 de Abril nas escolas foi fruto de um trabalho e de uma vontade comuns. Nessa altura ninguém nos mandava trabalhar para além das nossas obrigações. Mas fazíamo-lo por gosto. Achávamos que era preciso.

O conceito de gestão democrática das escolas era diferente do que é hoje?

M. Coelho: Sim, noto que se foi perdendo a capacidade de mobilizar pessoas para essa tarefa. Inicialmente os professores não se importavam se assumir cargos de gestão, que para mais não eram remunerados. Hoje já nem tanto, mas continuo a achar que só participando da decisão se vê o sentido do que se faz.

Costumas falar do 25 de Abril aos teus alunos? De que forma é abordado este tema nas escolas?

M. Cruz: Curiosamente, um destes dias uma aluna sugeriu que marcássemos um teste para o dia 25 de Abril. Eu perguntei-lhe se ela sabia que era feriado e disse-lhe que o pretendia comemorar? Exceptuando situações como esta, são poucas as oportunidades que temos para abordar o tema. Até porque a extensão dos programas não permite perder muito tempo com questões extra-curriculares.

Como é que os alunos mais novos vêm o 25 de Abril? Têm noção do que representou?

M. Cruz: Julgo que não. Para eles é mais um marco na História como qualquer outro, mesmo que tenha ocorrido há séculos. É um acontecimento que não faz parte da memória deles, nem sequer por via dos pais.

Será que o facto de se ter institucionalizado a data não contribui para esse desinteresse?

M. Coelho: Não me parece. Mas admito que esse lento apagar da memória do 25 de Abril na escola pode, em parte, ser imputado dos professores. Talvez com receio de parecermos ?caretas?, por vezes tentamos chegar aos alunos de uma forma que não só não lhes diz nada como pode até servir para afugentá-los. Provavelmente falta capacidade criativa para falar do 25 de Abril de uma forma que os desperte para o significado da revolução.

Não terá a escola falhado enquanto microcosmos de construção e de partilha de valores democráticos, desde a relação entre a tutela e os professores e entre estes e os alunos?
Pergunto isto no sentido de saber se ela não teria sido uma boa oportunidade para os alunos se aperceberem, através das relações entre os diversos actores, que a tomada de decisões pode ser construída e não simplesmente emanado do topo, o que talvez fosse uma boa forma de mais do que falar do 25 de Abril tentar pô-lo em prática?

M. Coelho: A escola nunca teve muita liberdade para fazer as coisas à sua maneira, tem esquemas muito rígidos de funcionamento. Mas, apesar de tudo, podia ter feito mais. Porém, há alguns bons exemplos, como a redacção dos regulamentos internos e do código disciplinar das escolas, entre outros. Mas isso exige um maior empenho dos professores, que são os elementos privilegiados para fomentar uma maior participação e comprometimento dos alunos.

M. Cruz: Sim, eventualmente uma estrutura como essa teria mais virtudes. Mas penso que falta a motivação para construi-la.

Os professores pensam nessas questões?

M. Cruz: Poucos. Mas esses poucos discutem e questionam. E apesar de nem toda a gente partilhar desse desejo de mudança, ela tem de passar por aí. Um processo que se gere a nível de grupo e que lentamente se vá alargando, de baixo para cima.

Como foi no pós-25 de Abril? A mudança nas escolas era desejada por um grupo grande de professores e apenas uma minoria se opunha?

M. Coelho: Sim, de facto nessa altura havia uma grande maioria que queria mudar, e não eram apenas os professores, mas grande parte da população. O 25 de Abril foi uma verdadeira revolução no sentido em que não se limitou a uma mudança de poder mas ao estabelecimento de uma nova ordem. Não estou completamente desiludida com o curso dos acontecimentos porque ainda hoje há movimentos organizados que perfilham esses ideais e que há-de sempre haver pessoas que querem transformar a sociedade.

A alternância entre dois partidos no poder e o adormecimento do movimento cívico não porão em causa a própria essência do Estado democrático?

M. Coelho: Sim, porque no fundo há uma alternância de um bloco central. Dessa forma é difícil que haja algum tipo de transformação?

M. Cruz: Um imobilismo que talvez derive da sensação de impotência que actualmente temos em relação à possibilidade de mudança, porque há uma maioria que escolhe sempre não mudar nada?

M. Coelho: ?ou fazer reformas que mantêm tudo na mesma e que têm consequências ao nível da escola. Se a escola trabalhasse para si e fosse fazendo a sua própria reforma com o trabalho quotidiano, avaliando as necessidades dos alunos, organizando respostas a partir do seu contexto, questionando a sua própria organização e estrutura interna, talvez fosse possível mudar alguma coisa. 

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 155
Ano 15, Abril 2006

Autoria:

Manuela Coelho
Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto
Marta Cruz
Professora do ensino secundário
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Manuela Coelho
Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto
Marta Cruz
Professora do ensino secundário
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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