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A era pós-genómica da Biologia (2ª parte) ? a saga do genoma

Retomo o tema da sequenciação do genoma humano usando como deixa duas pequenas notícias das revistas Nature e Science de Maio de 2005, uma das quais começava com a seguinte frase: ?É oficial: as guerras do genoma acabaram?. Referiam-se à decisão da empresa Celera Genomics de encerrar o seu serviço pago de acesso aos dados de sequenciação de genomas. Estes foram oferecidos a uma instituição estatal norte americana, o US National Center for Biotechnology Information, que já disponibilizava em regime de livre acesso os dados obtidos pelo consórcio público internacional do Projecto do Genoma Humano (em www.ncbi.nlm.nih.gov). Acrescentava a Science que, de bordo do seu navio ?Sorcerer II?, em missão científica ao largo da Austrália, o fundador e ex-presidente da Celera, Craig Venter, agora (obviamente) envolvido em novas aventuras, declarou por email o seu apoio à decisão da actual administração. Se esta história não parece o argumento para um filme de Hollywood, pouco falta. E é apenas a ponta do iceberg da saga que envolveu o projecto de sequenciação do genoma humano.
O Projecto do Genoma Humano foi construído como um projecto científico de grande envergadura, envolvendo, ao contrário do que é comum pensar-se, muito mais do que laboratórios de biologia molecular unidos no objectivo único de obter uma listagem ordenada das bases A, T, C, G do DNA humano. Na verdade, este projecto cobre áreas científicas que vão desde a engenharia e informática às ciências sociais e jurídicas, uma vez que se compreendeu que o armazenamento de 3,2 mil milhões de letras teria pouca ou nenhuma utilidade se não fossem desenvolvidas ferramentas para dissecar a informação aí contida, e seria contraproducente se não envolvesse uma reflexão sobre as implicações filosóficas, éticas e legais levantadas pelos resultados obtidos. Como que para justificar esta epopeia, insinuou-se a ideia de que o conhecimento da sequência do genoma revelará o segredo do que é ser humano e de que a postura maioritária no meio científico é a de que os genes explicam tudo. Na verdade, não conheço um único especialista em biologia molecular que subscreva esta ideia. Trata-se antes de uma visão distorcida que emergiu como um sumário dos argumentos simplificados que os cientistas utilizam para convencer uma plateia de decisores e financiadores sem formação científica da importância de investir tantos recursos na investigação.
As expectativas reais sobre as consequências do conhecimento detalhado do genoma humano incidiram desde sempre sobre dois aspectos fundamentais, em relação aos quais os benefícios são já evidentes. Os frutos do Projecto do Genoma têm um efeito propulsor fabuloso na investigação sobre o funcionamento das células e organismos, permitindo a substituição de processos laboratoriais dispendiosos e extremamente morosos por minutos de consulta informática de uma base de dados e introduzindo alterações significativas na prática científica diária. Ainda assim, o impacto mais referido do conhecimento do genoma é ao nível da identificação de genes associados a doenças humanas complexas e a aplicação deste conhecimento no desenvolvimento de métodos de diagnóstico inovadores e de novas terapias. Nenhum destes aspectos escapou aos olhos do investimento privado. Neste contexto, a história de Craig Venter é uma verdadeira epopeia com contornos de Jeckyl e Hide. Inicialmente associado ao consórcio público, responsável pela aplicação de metodologias inovadoras na sequenciação de genomas de microorganismos, uma espécie de treino para os desafios que se seguiriam, um desentendimento sobre a abordagem a seguir na sequenciação do genoma humano foi o pontapé de saída que levou Venter a constituir uma empresa de sequenciação para competir com o Projecto do Genoma Humano, esperando lucrar com a venda de informação genética. Esta informação, por sua vez, tem vindo a ser alvo de patentes duvidosas por parte de empresas farmacêuticas e de biotecnologia. É o caso, por exemplo, da sequência de uma variante de um gene humano associado a predisposição para o cancro da mama. Sem ser alvo de contestação legal, geralmente associada a elevados custos, estas patentes podem, como no caso referido, limitar aplicações de diagnóstico importantes e pouco dispendiosas ao pagamento de direitos comerciais. A jogada de Venter desencadeou uma corrida ao genoma que terminou num empate técnico, mas talvez numa vitória pessoal: Venter não só provou a validade da abordagem que propunha, como enriqueceu e ainda passou a conhecer a sequência do seu próprio genoma (sim, porque foi o seu um dos 5 genomas sequenciado pela Celera). Mas o sucesso do consórcio público, que disponibiliza gratuitamente desde a primeira hora toda a informação obtida, levou a que os lucros da Celera não fossem os esperados, resultando na reconversão da empresa que, numa pirueta de boas intenções, decidiu tornar público mais um pouco do património genético da humanidade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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