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Processos emancipatórios das mulheres e o ruir dos pilares civilizacionais (I)

«E o tempo ainda lhes sobra para cuidar dos filho e para trazer a casa limpa e esteirada.»
(Raul Brandão, Os Pescadores, 1923)

No balanço do século XX, historiadores, cientistas sociais, jornalistas e opinion-makers, dependendo da perspectiva em que se situavam, foram-nos propondo várias sínteses para o dito: século do Povo, da Democracia, dos Totalitarismos, das Guerras, das Mulheres. Inclino-me para esta última (mesmo não integrando essa importante corrente académica, anglo-saxónica, dos women studies), e só não a adopto, em definitivo, porque corro o risco de repetição neste em que agora nos encontramos, quando já alguém publicitou a ideia que «o terceiro milénio seria feminino, ou não seria nada».
O caso português, neste particular, merece estudo cuidado pelas profundas mudanças operadas, num tão curto período de tempo; nos últimos trinta e cinco anos, o nosso viver quotidiano tem sofrido abalos de tal ordem que atingiram de morte os alicerces em que assentou, durante séculos, a nossa civilização ? a gastronomia e a educação. A causa (e estamos conscientes de como é arriscado usar o singular em paradigmas de complexidade) está na alteração do papel da mulher na estrutura funcional da nossa sociedade.
Alimentação e educação são dois inquestionáveis pilares societais que permitem a reprodução continuada de um agregado humano. Ambas tiveram na mulher o seu sustentáculo. Mães e esposas eram uma autoridade, indiscutível, nestes domínios. Estar em casa, a tempo inteiro, possibilitava-lhes assegurar, com enorme saber e eficácia, essas duas funções essenciais: educar os filhos e confeccionar as refeições para a família.

Pobres mas bem comidos

Parece ser esta a conclusão para que aponta o movimento slow food quando pugna pela retoma de ancestrais dispositivos de uma cultura que, mesmo com escassos recursos, conseguia atingir níveis de qualidade alimentar que hoje invejamos e que, os mais nostálgicos, cultivam, quanto muito, aos fins-de-semana ou em festivais gastronómicos. Alfredo Margarido, num vetusto, mas nem por isso menos actual, artigo ?A comida é mais importante do que a política!?, relembra-nos: «a nossa cozinha tradicional organizou-se para reforçar a dominação da mulher pelo homem; quem senão as mulheres, passou uma parte da sua existência diante do fogareiro, da lareira, do fogão, para multiplicar os petiscos que servem de suporte à consciência nacional.» Em famílias alargadas, onde co-habitavam três gerações ? avó, filha e neta ? estes conhecimentos e técnicas, testados e apurados ao longo dos tempos, eram transmitidos em processos informais de ?ensino? individualizado, através de tutorias inter-geracionais on time, de feedback constante, num ?laboratório? interdito aos homens. «O que se verifica é que hoje as mulheres rejeitam essa dominação [e essa aprendizagem, digo eu], em proveito da sua liberdade ? com a qual não podemos deixar de estar de acordo ? mas em desproveito da nossa própria substância cultural».
Quando Xavier Bonal (in Configurações, 2006) pergunta, com preocupação, «Que mais vamos pedir à escola?», parece, nesta matéria, estarmos a salvo de uma eventual demanda política, o que é curioso, pois ao contrário do que vimos nos EUA, na disciplina de HomeEconomics (uma versão tecno-andrógena dos nossos velhos ?Lavores Femininos?), em Portugal (ainda) não se reconfigurou o currículo do ensino básico com a aquisição de ?competências? da arte do ?bem comer? (acolhemos, no entanto, a alta performance culinária nas Escolas de Hotelaria e Turismo, com direito a grau e tudo).
Só que os grandes conflitos bélicos do século passado empurraram as mulheres para a vida activa, fora de casa, num trabalho, agora, reconhecido porque socialmente visível. Os portugueses não participaram na Segunda Guerra Mundial mas tiveram a Guerra Colonial. Os efeitos foram semelhantes aos do mundo Ocidental dito desenvolvido: hoje comemos mal, ainda que muito. Por isso, a obesidade entrou na agenda das nossas preocupações. Mas o problema não se resolve com o ?retorno ao lar?. Esse abandono marcou, em definitivo, «o fim da velha sociedade patriarcal e masculina, de tradição mediterrânica, católica e latina» (António Barreto ?Portugal entre dois séculos?). A emancipação é irreversível. Resta-nos saber edificar, em novos moldes, uma nova sociedade.
Continua (em Outubro): ?Analfabetos mas bem educados?.


  
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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